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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.127 Campinas abr. 2011

 

ARTIGO

 

O lugar das iluminuras medievais nas bibliotecas de obras raras

 

 

Raquel de Fátima Parmegiani

Historiadora e professora da Universiade Federal de Alagoas

 

 

A sociedade medieval teve uma relação muito próxima com o livro. Herança direta da veneração judaica à palavra escrita, o cristianismo, um dos elementos mais importante dessa sociedade, fundou-se sobre uma Revelação que passou inteiramente pela intermediação da tradição das letras. A frequência com que o livro aparece como elemento central dos acontecimentos milagrosos que constituem o núcleo das tópicas hagiográficas medievais, deixa claro o valor desse objeto para a cultura do período.

Para essa sociedade oral e de poucos leitores, a raridade do material, ou seja, das folhas de pergaminho ou de vitela, e a dificuldade na reprodução dos livros, transcritos à mão nos chamados escriptorium – não devemos nos esquecer que uma boa biblioteca no século X, não contava com mais de dez exemplares –, acabou instaurando no imaginário medieval uma relação com esse material cultural próxima a um talismã, associado ao uso arcaico de escrever e pintar para fins mágicos.

A sempre presente preocupação do homem medieval em salvar, organizar e conservar a herança cultural escrita, em meio a desestruturação material que marcou esse período da história europeia, acabaram por fazer dele um objeto de dimensões às vezes excessivamente imponentes; livros enormes, no qual eram reunidos, por exemplo, todos os textos da Bíblia e seus comentários. Grandes, pesados e de uso penoso, os livros tornaram-se, muitas vezes, menos para serem lidos do que para serem apreciados, acentuando um caráter sacral e misterioso, posto que privilegiavam-se os aspectos visuais – solenidade e grandeza do formato – relativamente aos aspectos gráficos.

Dentro dessa perspectiva, a Idade Média deu às imagens um importante papel ao lado da escrita, produzindo um riquíssimo material artístico visual que completava e enriquecia os manuscritos: a arte das iluminuras ou miniaturas. Apoiada numa tradição que vem da antiguidade, a prática da ilustração dos textos ganhou nesse período uma riquíssima técnica pictórica que envolvia desde a produção das tintas – propriedades dos materiais, a importância da orientação das proteínas de colágeno nas propriedades físicas da folha de pergaminho –, até as características relacionadas às escolas artísticas que contemplavam a arquitetura, a escultura, a pintura e os vitrais das igrejas medievais, como por exemplo, o romântico, o gótico, o mozárabe.

A produção cada vez mais frequente, ao longo da Idade Média, da ilustração dos manuscritos, foi possível graças às mudanças no suporte da escrita trazidas pelo uso do códice – formato muito parecido com o livro moderno, que era mais manejável do que o rolo, possibilitando que as iluminuras pudessem acompanhar o texto, auxiliando a sua compreensão.

Com os códices os copistas e iluminadores introduziram mudanças substanciais na relação texto/imagem. As iluminuras passaram a ocupar a esquerda e a direita da coluna escrita. Aos poucos se generalizou e predominou o uso da imagem intercalada com a escritura, o que permitiu uma relação orgânica com o texto, como é possível ver neste fólio da Bíblia de São Luís.

 

 

O processo de dissociar o discurso escrito do visual foi paulatino e irreversível. A princípio se utilizou a metade inferior da página para as iluminuras, logo depois elas ocupavam uma página inteira. Nesse processo de separação da imagem em relação ao texto escrito, foi se gestando um discurso paralelo ao textual e assumindo uma função própria, a de produzir um discurso visual. Em definitivo, a imagem adquiriu um poder comunicativo próprio.

 

 

As iluminuras completavam as páginas dos códices dos mais diversos assuntos tratados na Idade Média: a Bíblia e os comentários aos seus livros, saltérios, livro das horas, livros de medicina, bestiários etc. Algumas obras, tendo a transcrição do seu texto integral repetida de forma relativamente frequente ao longo dos séculos medievais, provavelmente pela boa recepção que tiveram no período, receberam um tratamento especial para suas iluminuras, ganhando a cada edição peculiaridades próprias, como é o caso dos “Beatos” – série de iluminuras que compõem os diversos códices produzidos entre os séculos VIII e X na península ibérica, de um Comentário ao apocalipse escrito por um monge das Astúrias e que carregam em cada um dos seus exemplares, características particulares do iluminador, que as interpretou de acordo com suas regras artísticas, cultura e talento próprio.

Pela dificuldade na produção e conservação desses manuscritos iluminados, que sempre contaram com poucos exemplares devido à carestia de folhas e de tintas, e das condições das técnicas rudimentares e manuais nas quais eram editados, os que chegaram até nós são de valor inestimável, posto que guardam em suas páginas parte dos, relativamente modestos, vestígios materiais que compõem a herança da cultura medieval ocidental, além do seu valor artístico inquestionável.

Na atualidade podemos encontrar originais desses códices em bibliotecas de obras raras como a do Metropolitan Museum of Art e Pierpont Morgan Library, de Nova Iorque, Museu Arqueológico Nacional e Biblioteca Francisco Zabálburu y Basabe, ambas de Madri, Santa Igreja Catedral Primada, de Toledo, Catedral Metropolitana de Oviedo, Biblioteca Casanatense, de Roma, Museu Diocesano de Arte, de Girona, Biblioteca Nazionale Marciana, de Veneza, Biblioteca Nacional da Rússia, em São Petersburgo, Bibliothèque Nationale de França, The British Library, Museu Calouste Gulbenkian, de Lisboa.

Na Europa, casas editoriais como “Moleiros editores”, têm realizado um trabalho importante de reprodução desses códices compostos de iluminuras, a partir de técnicas tanto de produção do suporte, como de método de escrita e iluminação que reproduzem todos os matizes das pinturas e da escrita dos manuscritos originais. Embora essas obras sejam de alto valor comercial e, muitas vezes, destinados à bibliófilos, podemos afirmar que essas edições têm contribuído de forma efetiva para que as iluminuras medievais, que até pouco tempo não eram valorizadas artisticamente, ganhem seu lugar de importância na história da arte e da cultura do mundo ocidental.

A produção de imagens tendo como suporte as folhas dos códices pode ser pensada, também, para além do seu valor artístico, como um campo de investigação importante e ainda pouco explorado pelo historiador no que concerne à compreensão da sociedade medieval. Entendida dentro da perspectiva de que elas significam, em grande medida, uma experiência cultural e social transformada em representação, as imagens ganham um caráter de documento. Segundo Eduardo Neiva em um artigo publicado nos Anais do Museu Paulista sobre história e cultura material em 1993, as imagens estão sempre saturadas de cultura. Elas estruturam historicamente formas da experiência humana. São simultaneamente reflexo e esboço de comportamentos. Da imagem à ação, os vários níveis possíveis da experiência cultural estão articulados.

Por conseguinte, seja pensando na perspectiva da história da escrita e da leitura, fruto do desenvolvimento das técnicas de produção do livro, como documentos históricos que carregam vestígios da sociedade medieval, ou ainda pelo seu riquíssimo caráter artístico, as iluminuras são, com certeza, repletas de valor histórico, que justificam o seu lugar dentro das bibliotecas de obras raras.