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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.127 Campinas abr. 2011

 

ARTIGO

 

O que é livro raro?

 

 

Márcia Carvalho Rodrigues

Bibliotecária, mestre em letras, cultura e regionalidade e coordenadora do Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Central da Universidade de Caxias do Sul

 

 

Quando se fala sobre livros raros, algumas questões relacionadas costumam vir à tona, como o conceito de raridade bibliográfica e a prática do colecionismo.

Sobre o colecionismo, sabe-se que é inerente ao ser humano a vontade de possuir objetos, de guardar coisas. Partindo desta premissa, é possível deduzir que um objeto cuja existência venha a se tornar conhecida, em algum momento será o “objeto de desejo” de alguém. Dessa necessidade humana de possuir, surgem as coleções.

Mas o que move esse desejo, esse impulso de guardar coisas, acumular objetos? Uma possível explicação seria o fato de que os seres humanos são dotados de um instinto de propriedade. Além do mais, possuir determinadas peças confere prestígio a quem as possui. É como se houvesse a possibilidade da transferência do significado e da importância do objeto para o seu detentor, uma apropriação do poder inerente à obra. Somando-se a isso, há ainda um desejo de conservação do patrimônio às gerações futuras, numa tentativa de preservar uma amostra das tradições, costumes, crenças etc., de uma época, representadas por artefatos intencionalmente selecionados.

Assim como qualquer outro objeto colecionável, o livro também carrega sua carga simbólica, e representa a materialização da cultura e do conhecimento. Consequentemente, assume características que vão além de sua finalidade inicial – a de servir de suporte à s ideias, passando a simbolizar o conhecimento em si, sendo objeto de status e poder, agregando características que o tornam também objeto de apreciação.

Colecionadores de livros raros escolhem suas obras em função, principalmente, da caracterização do livro enquanto objeto: belas encadernações, livros nos quais se encontram preciosas gravuras, exemplares que possuem anotações manuscritas de pessoas de destaque na vida pública ou em determinada área do conhecimento, tiragens especiais etc.

Sendo assim, livros tornam-se raros ou valiosos quando carregados de significado, ou seja, quando apresentam características que os elevam à categoria de símbolos, sejam estes de poder, de status, de riqueza ou de superioridade, deslocando-se do universo dos “livros comuns” para o universo das “raridades bibliográficas”.

Mas o que torna um livro raro?

Não existem fórmulas fáceis para determinar a raridade de um exemplar. Um livro pode se tornar valioso por seu conteúdo – por exemplo: os primeiros relatos de invenções e descobertas científicas, as primeiras edições de importantes obras literárias ou históricas; ou por suas características físicas – por exemplo: encadernações luxuosas contendo ouro e pedras preciosas, anotações manuscritas de uma pessoa ilustre, livro cujas ilustrações dão uma nova interpretação de um texto ou da obra de um artista de renome etc.

Pode-se dizer também que a raridade está direta e intimamente ligada à escassez da obra, ou seja, um livro alcança o status de raridade bibliográfica quando a sua procura excede a oferta, tornando-se difícil de ser encontrado devido a uma série de fatores que, isolados ou combinados entre si, determinam a importância dessa obra dentro do universo bibliográfico. Um exemplar único possui atributos que o tornam insubstituível, o que acaba incidindo diretamente na relação oferta-procura, aumentando o seu valor de mercado. Daí advém sua carga simbólica, seu status, sua representatividade: torna-se “objeto de desejo” de alguém.

Em geral, curadores de acervos, colecionadores de obras raras e livreiros antiquários fazem uso de uma metodologia própria, baseada em uma série de aspectos relacionados à obra, que norteia seu trabalho de identificação de raridades. Essa metodologia, sistematizada e apresentada pela bibliotecária Ana Virgínia Pinheiro (chefe da Divisão de Obras Raras da Biblioteca Nacional) em sua obra Que é livro raro1, sugere a observação das seguintes características:

Limite histórico

Deve-se observar os períodos que caracterizam a produção artesanal de livros. A antiguidade, por si só, não é suficiente para tornar um livro valioso sob o ponto de vista mercadológico. A importância do texto, as condições do exemplar e a demanda pela obra determinarão o valor de um livro antigo. No entanto, algumas categorias de livros são geralmente mais procuradas, incluindo:

- Todos os livros impressos antes de 1501: em meados de 1450, Johann Gutenberg (1397-1468) inventou, em Mogúncia (Alemanha), a imprensa de tipos móveis. Antes disso, os livros eram escritos manualmente, copiados um a um, de forma totalmente artesanal. Desde então, e até 1500, os livros impressos receberam a denominação de incunábulos (obras impressas nos primeiros anos após a invenção da imprensa, até 1500), e correspondem ao período que se pode chamar de “infância da imprensa”.

- Livros impressos nas Américas antes de 1801: nos séculos subsequentes à invenção de Gutenberg, a imprensa se difundiu rapidamente, porém de maneira irregular, chegando mais cedo em alguns lugares e mais tardiamente em outros. Assim, pode-se também considerar raros os livros impressos nas Américas até o ano de 1801, quando sua produção em papel artesanal perdeu representatividade e o livro impresso ganhou sua face industrial.

- Livros impressos no Brasil no período da Impressão Régia (1808-1822), podendo-se estender este período até o final do século, devido à demora com que se desenvolveu a imprensa em certas regiões do Brasil (no Rio Grande do Sul, por exemplo, a história da imprensa tem início em 1827, quando surgiu o primeiro periódico gaúcho: o Diário de Porto Alegre).

Aspectos bibliológicos

Deve-se observar características referentes ao processo e aos materiais utilizados na produção da obra. Deve-se considerar o tipo de papel utilizado na confecção da obra (ex.: pergaminho, velino); a presença de ilustrações produzidas de forma artesanal ou por um artista de renome, como calcogravuras, litogravuras e aquarelas; belas e luxuosas encadernações que utilizam materiais nobres e preciosos, como pedras e ouro; livros impressos em formatos peculiares, como edições em miniatura ou em formatos não usuais.

Valor cultural da obra

Um dos fatores mais relevantes na determinação de raridade é a importância intrínseca da obra, ou seja, o quão importante o livro é considerado na sua área. Devido a este fator, as primeiras edições (também chamadas de edições princeps) de uma obra importante para determinada área do conhecimento são bastante valorizadas. Este é o caso, por exemplo, das seis primeiras edições de On the origin of species (A origem das espécies), de Charles Darwin, que se tornaram atraentes para colecionadores por demonstrarem mudanças importantes no pensamento de Darwin ao longo do tempo. Da mesma forma que as edições princeps, edições censuradas, expurgadas e tiragens reduzidas também costumam ser consideradas raras.

Pesquisa bibliográfica

Diversos repertórios bibliográficos consagrados podem – e devem, sempre que possível – ser utilizados na pesquisa sobre determinado autor ou obra. Tais repertórios são obras monumentais que apresentam informações detalhadas sobre as obras e seus autores. É o caso, por exemplo, da Bibliographia Brasiliana, de Rubens Borba de Moraes, reeditada recentemente pela editora da USP. Esta obra, em dois volumes, é considerada a principal fonte de referência de livros raros sobre o Brasil, pois reúne descrições e comentários sobre livros publicados entre 1504 e 1900 referentes ao Brasil, além de livros de autores brasileiros do período colonial, impressos fora do país.

Características do exemplar

Deve-se observar a integridade física do exemplar (quanto mais preservado, maior será seu valor de mercado); características como a presença de marcas de propriedade (assinaturas, carimbos, ex-libris); a presença de anotações manuscritas de pessoa ilustre (notas marginais, grifos, observações manuscritas); a presença de dedicatórias e autógrafos.

Exemplares cujo antigo proprietário é ou foi uma pessoa famosa ou importante para alguma área do conhecimento tendem a aumentar o valor de mercado do mesmo. Da mesma forma, autógrafos, inscrições ou dedicatórias, ex-libris, carimbos ou outras marcas distintivas, comprovadamente autênticos, também contribuem para tornar o livro raro: o objeto livro passa agora a representar o proprietário e toda a sua influência. Torna-se, portanto, um intermediário entre o leitor e o ilustre proprietário.

Há que se observar, porém, que autores contemporâneos costumam assinar muitas cópias de seus livros em eventos organizados para promover a venda de suas obras (lançamentos, feiras do livro etc.). Por serem comuns nos dias de hoje, os autógrafos normalmente acrescentam pouco ao valor de mercado do livro. Sendo assim, às vezes, torna-se necessário consultar um especialista com amplo conhecimento do mercado livreiro para avaliar um exemplar assinado.

Baseadas nos aspectos acima mencionados, as bibliotecas costumam elaborar uma série de critérios para determinação de raridade, buscando assegurar tratamento adequado às suas obras. Além de estabelecerem regras sobre o que será considerado raro, esses critérios balizam o trabalho do bibliotecário, contribuindo para sanar a dúvida inicial sobre o que vem a ser um livro raro.

Enfim, para alcançar o status de raridade, livros devem atender a pelo menos um dos requisitos acima mencionados, sendo que alguns conseguem atender a vários requisitos ao mesmo tempo. Livros raros são luxos, objetos de desejo que bibliotecas e colecionadores ambicionam ter para si. Cabe aos curadores de acervos, bibliotecários, colecionadores, pesquisadores, livreiros etc. buscar subsídios para que essas obras sobrevivam à ação do tempo, para que gerações futuras possam se deliciar com os prazeres de ler, ver ou manipular um livro raro.

 

Referência

1. PINHEIRO, Ana Virgínia Teixeira da Paz. Que é livro raro? Uma metodologia para o estabelecimento de critérios de raridade bibliográfica. Rio de Janeiro : Presença, 1989.