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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.127 Campinas abr. 2011

 

REPORTAGEM

 

Entre saques e chamas, um tesouro sobrevive

 

 

Rodrigo Cunha

 

 

“As palavras voam, os escritos permanecem”, diz um provérbio latino. Mas a permanência física de documentos e livros ao longo dos séculos, além de requerer cuidado de conservação contra as ações do tempo e das pragas, está sujeita a inúmeras adversidades, de incêndios a terremotos, de bombardeios a saques em tempos de guerra. As principais bibliotecas e os mais importantes arquivos do mundo passaram por incidentes como esses, o que faz dos manuscritos e livros remanescentes tesouros incomensuráveis. Símbolo de poder outrora pertencente a coleções particulares de papas, reis e estadistas, os acervos de obras raras das bibliotecas nacionais, cujo acesso é tradicionalmente restrito a pesquisadores – com exceção das exposições abertas à visitação –, estão cada vez mais disponíveis para o público em geral, com sua digitalização, sem riscos e com a promessa de maior longevidade.

Uma das mais importantes e procuradas instituições com obras raras é a Biblioteca Apostólica Vaticana, que reabriu suas portas ao público em 2010, após três anos de reformas para ampliação do espaço e melhor atendimento à crescente demanda por seu acervo. A biblioteca oficial da Igreja Católica, no Vaticano, é também das mais antigas. Seus primórdios remontam ao século IV, quando já se organizava um arquivo da Igreja que, a partir do século VIII, ficaria a cargo de um bibliotecário. O acervo se dispersou, segundo o site oficial da biblioteca, por razões desconhecidas, na primeira metade do século XIII. As novas coleções adquiridas no papado de Bonifácio VIII (1294-1303) também sofreriam perdas, com a transferência da biblioteca para Perúgia e Avignon. No século XV, já de volta a Roma, no período em que Nicolau V comandou a Igreja (1447-1455), o acervo cresceu de 350 para 1200 manuscritos em latim, grego e hebraico, os quais o papa queria tornar disponíveis para pesquisadores. A biblioteca desse período consistia em uma simples sala de leitura, que no papado de Sisto IV (1471-1484), se ampliaria para quatro ambientes: a Bibliotheca Latina; a Bibliotheca Graeca; a Bibliotheca Secreta, com manuscritos não disponíveis para o público; e a Bibliotheca Pontificia, com arquivos e registros papais.

Por volta de 1610, o papa Paulo V cria os Arquivos Secretos do Vaticano, que passariam a guardar todos os decretos, cartas, publicações e processos da Igreja, entre eles os do Tribunal da Inquisição. Dois séculos depois, após a invasão das tropas de Napoleão, os arquivos foram levados para Paris e só seriam recuperados pelo Vaticano em 1870. O império napoleônico também confiscaria o acervo de bibliotecas de outras instituições tradicionais da Europa, como a da universidade mais antiga da península ibérica, em Salamanca, na Espanha (leia entrevista com a diretora da biblioteca dessa universidade). Em 1881, o Papa Leão XIII decide abrir o acesso aos Arquivos Secretos para pesquisadores, mas apenas para documentos arquivados há mais de 75 anos. Atualmente, boa parte dos Arquivos Secretos e do acervo da Biblioteca Vaticana está não apenas disponível para a consulta de estudiosos – que precisam passar por um rigoroso protocolo de regras, após obter a permissão para o acesso – mas também digitalizado e acessível pela internet. É possível estudar tanto episódios do período áureo do poder da Igreja Católica, como os processos da Inquisição na Idade Média, quanto fatos mais recentes, como o posicionamento da Igreja diante de conflitos como a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Outra tradicional instituição em que o acesso a documentos do passado se torna cada vez mais facilitado pela digitalização é o Arquivo Nacional da Torre do Tombo, na capital portuguesa. Devido à fragilidade dos livros e documentos antigos, o acesso direto a eles só é dado a pesquisadores devidamente autorizados e comprometidos a seguir rigorosos cuidados no manuseio. Ao público em geral, restam as visitas a esporádicas exposições com uma seleção de obras protegidas do contato por mesas ou estantes envidraçadas. Graças à digitalização, no entanto, a Torre do Tombo criou várias exposições virtuais, como a que trata dos 100 anos da República em Portugal; a que apresenta documentos portugueses classificados pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como parte do programa de registro intitulado Memória do Mundo – entre eles a Carta de Caminha e o Tratado de Tordesilhas –; e a que contém registros e imagens da Inquisição de Lisboa. Esta última está entre as mais acessadas, inclusive por pesquisadores brasileiros, pois aquela unidade do tribunal católico também atuava sobre as colônias portuguesas.

 

 

De arquivos de reis ao acesso na internet

As atividades da Torre do Tombo começaram em 1378, como arquivo do rei, para guardar documentos da administração do reino, de suas colônias e registros envolvendo a relação de Portugal com outros países. Por muito tempo, o acesso a eles foi bastante restrito e só se dava mediante autorização do monarca. “No século XVII, demonstrando a evolução da historiografia, a preocupação de fundamentar a escrita da história levou algumas personalidades a solicitarem autorização para a consulta de documentos na Torre do Tombo”, diz Paulo Tremoceiro, chefe da Divisão de Comunicação do arquivo. Ele aponta como exemplos as consultas ao Livro de leis e posturas feitas por Gabriel Pereira de Castro e por António Brandão, entre 1617 e 1625, que resultaram em publicações sobre a monarquia portuguesa; e as autorizações de acesso dadas aos padres da Companhia de Jesus, em 1687, e aos sócios da Real Academia de História Portuguesa, em 1721, que renderiam publicações como as Provas de história genealógica da Casa Real Portuguesa, de António Caetano de Sousa.

Em 1755, Lisboa sofreu um terremoto devastador que destruiu várias edificações, entre elas, a Torre do Tombo. A monarquia portuguesa, porém, mostrou obstinação em restaurar o que foi encontrado nos escombros e renovar o acervo tanto desse arquivo quanto o da Biblioteca Real, também destruída – a qual seria trazida para o Brasil com a família real, na fuga da invasão napoleônica, e daria origem à nossa Biblioteca Nacional (leia reportagem sobre as bibliotecas brasileiras). De lá para cá, várias coleções foram incorporadas ao acervo da Torre do Tombo. “O Arquivo Nacional possui uma biblioteca constituída por livros provenientes, majoritariamente, de instituições eclesiásticas extintas em 1834 ou depois dessa data. No século XX, entraram a biblioteca Canedo, a biblioteca do jornal O Século e a biblioteca da Comissão para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, entre outras”, conta Tremoceiro.

Assim como na Biblioteca Vaticana, registros ligados tanto ao período das grandes navegações e descobertas e aos processos do Tribunal da Inquisição quanto a fatos mais recentes despertam a atenção na Torre do Tombo. “Ao longo dos últimos 20 anos, e com a entrada dos arquivos de instituições contemporâneas, nomeadamente do século XX, a procura dos investigadores centra-se ao nível dos processos da polícia política”, afirma Tremoceiro. Entre os acervos incorporados está o do Arquivo da Direcção dos Serviços de Censura, instituição criada na década de 1930 para impor à imprensa a censura prévia em matérias que tratassem de assuntos políticos e sociais. Em 1972, ela passou a se chamar Direcção Geral da Informação, mas a censura continuou a existir sob a designação de “exame prévio”. Portugal viveu um dos mais longos regimes ditatoriais da história, que se iniciou com um golpe militar em 1926, passou pela longa administração de Salazar entre 1932 e 1968 e só terminou em 1974.

Na França, a Biblioteca Nacional, também ligada historicamente à realeza, passa por sua maior transformação justamente após a queda da monarquia. Até o século XIV, era comum que bibliotecas particulares como a do rei Carlos V, com centenas de manuscritos, se dispersassem após a morte de seu proprietário. A partir do reinado de Luís XI, entre 1461 e 1483, começa a haver uma continuidade de um acervo pertencente à monarquia. Embora a biblioteca real tenha passado por migrações como a Vaticana, só teria perdas importantes com as guerras entre católicos e protestantes, na segunda metade do século XVI. Seu acervo cresce consideravelmente a partir de 1666, no reinado de Luís XIV, com a aquisição de coleções privadas como a de Loménie de Brienne, com obras sobre a história da França, e a de Gilbert Gaulmyn, um orientalista.

Mas o acesso era restrito aos membros da corte e apenas em 1720 a biblioteca é aberta ao público e, ainda assim, apenas uma vez por semana, entre 11h e 13h. Somente com a derrubada da monarquia, com a Revolução Francesa iniciada em 1789, ela se tornaria verdadeiramente uma biblioteca nacional. Além de incorporar as coleções particulares do rei Luís XVI e das princesas Maria Antonieta e Elisabeth, entre outras, seu acervo passaria a ser não mais um bem do Estado, mas da nação. Além de obras em latim, hebraico e grego antigo, fazem parte das raridades que podem ser encontradas na Biblioteca Nacional da França – muitas delas também já digitalizadas – diversos manuscritos orientais em línguas como o sânscrito. Os estudos envolvendo a comparação de escritos antigos do Oriente e do Ocidente levou à formulação, no século XIX, da hipótese de uma língua ancestral comum entre os povos indoeuropeus.

Assim como na França, apenas no século XVIII surge uma biblioteca de caráter nacional na Grã-Bretanha. Em 1753, é criado o Departamento de Livros Impressos do Museu Britânico, uma das instituições que se aglutinariam em torno do que atualmente é a Biblioteca Britânica. Entre as coleções que até hoje mais se destacam em seu acervo está a de George III, que reinou na Grã-Bretanha entre 1760 e 1820, com cerca de 85 mil itens, entre livros e manuscritos. “A maioria desses textos é em inglês e latim, mas pelo menos uma dúzia de outras línguas também estão representadas. Exemplos específicos incluem a Bíblia de Gutemberg, primeiro livro impresso (1454-1455), e a primeira edição em folio das peças de Shakespeare (1623)”, diz Miki Lentin, chefe de Relações Estratégicas de Marketing e Comunicações com a Mídia, da Biblioteca Britânica. “ Em 1823, a biblioteca é presenteada à nação por seu filho, George IV, e em seguida transferida para o Museu Britânico, que depois se tornaria a Biblioteca Britânica”, conta Lentin. A coleção de George III, além dos manuscritos, também inclui mapas, planos topográficos, pinturas e desenhos, como os que pertenciam ao colecionador italiano do século XVII Cassiano dal Pozzo, adquiridos pelo rei em 1762.

 

 

O processo de conservar

Segundo Lentin, os livros da biblioteca de George III estão em surpreendente estado de conservação, dada a sua idade, e obras de outras partes do acervo da biblioteca demandaram maior trabalho de conservação. “Isso porque o acesso a essa coleção foi restrito durante boa parte dos séculos XIX e XX, e os leitores eram obrigados a consultar cópias alternativas disponíveis no acervo. O trabalho de conservação se limitava a criar caixas para proteger as delicadas encadernações dos livros”, revela. Hoje, boa parte deles já está digitalizada. Mas assim como aconteceu com as principais coleções europeias, parte do acervo se perdeu ao longo da história. “Durante a Segunda Guerra Mundial, uma bomba incendiária caiu na parte do Museu Britânico que abrigava a biblioteca de George III. 428 livros foram destruídos e, além disso, 1000 livros foram danificados, mas depois restaurados. Muitos dos livros destruídos foram depois repostos com outras cópias compradas no mercado de antiquários”, conta Lentin.

Evento semelhante pontua a história de uma das mais importantes bibliotecas da principal colônia britânica, e justamente durante o reinado de George III. A guerra que levou à independência dos Estados Unidos em 1776 se estendeu até 1783, mas novos conflitos com o reino britânico surgiram entre 1812 e 1815. Um bombardeio britânico ao Capitólio, o prédio do Congresso, em 1814, incendiou sua biblioteca. Para mitigar os danos, Thomas Jefferson, que havia redigido a Declaração de Independência promulgada em 1776 e foi o terceiro presidente dos Estados Unidos, entre 1801 e 1809, ofereceu ao Congresso vender sua coleção particular de livros, a qual possuía o dobro de livros em relação ao antigo acervo da biblioteca destruída no incêndio.

Depois desse renascimento, a Biblioteca do Congresso adquiriu diversas coleções particulares, entre compras e doações, como a de Peter Force, em 1867, a de Joseph Meredith Toner, em 1882, a do colecionador russo Gennadii Yudin, em 1906, e a de John Boyd Thacher, em 1925, esta última com tantos exemplares de livros raros que levou à criação de uma seção especial para obras raras na biblioteca. Também se destacam a compra do acervo de Otto H. Vollbeh, em 1930, com 3 mil livros do século XV, entre eles uma das poucas cópias da Bíblia de Gutemberg em perfeito estado de conservação, e a doação para a Biblioteca do Congresso do acervo de Lessing J. Rosenwald com 2600 livros raros ilustrados. Embora o fetiche de ter essas raridades ao alcance das mãos tenha feito esses colecionadores pagarem por seus tesouros particulares a peso de ouro em antiquários de todo o mundo, o destino das obras raras é geralmente uma instituição pública como a Biblioteca do Congresso. E boa parte desse tesouro que sobreviveu a bombardeios, saques ou terremotos está ficando cada vez mais disponível para acesso gratuito em um clicar de olhos.