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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.124 Campinas Dec. 2010

 

ENTREVISTA

 

Miguel Quintanilla. idealizador da Feira de Ciências que virá ao Brasil em 2012 fala sobre a importância da participação pública nas decisões sobre ciência e tecnologia

 

 

Por Sabine Righetti e Ana Paula Morales, de Salamanca

 

 

 

As pessoas devem participar de tomadas de decisão em ciência e tecnologia. Esse é o mantra do professor de lógica e filosofia da ciência da Universidade de Salamanca, na Espanha, Miguel Quintanilla. Um dos idealizadores da Feira Iberoamericana de Ciência e Tecnologia – Empírika, ex-secretário de Estado de Universidades e Pesquisa e à frente do Instituto de Estudos da Ciência e da Tecnologia (Ecyt, na sigla em espanhol), Quintanilla prega que a ciência faz parte do cotidiano das pessoas (da sua cultura científica) e que, por isso, todos devem opinar sobre ela e participar dela. E, nesse contexto, o jornalismo científico tem um papel central.

ComCiência – De onde surgiu a ideia de se fazer uma feira de ciências (a Empírika)? E por que uma feira e não um congresso científico ou algo do tipo?

Miguel Quintanilla – Por dois motivos. A feira está direcionada ao público e nós queremos falar com o público. As feiras são mais participativas e aproximam as pessoas. Também queríamos ver o efeito que as feiras de ciência têm no âmbito da participação pública em tomada de decisão científica. Por isso, escolhemos as feiras de ciência. A participação em tomadas de decisão científica tem uma importância econômica.

ComCiência – E por que a ideia de que a feira seja itinerante?

Quintanilla – Não nos conformamos apenas com Salamanca. Queremos que a feira vá para mais regiões da Iberoamérica, incluindo a América Latina. A feira é um ponto de contato e de intercâmbio entre a Europa e a América Latina. A ideia é de que a marca da feira seja ela passar por países diferentes. Esse caráter itinerante dará a oportunidade de que e comemore, em 2018, o oitavo centenário da Universidade de Salamanca, quando, então, a feira deverá retornar para a região, depois de ter passado por países importantes. A Empírika deverá passar pelo Brasil em 2012, pelo México em 2014 e depois pela Colômbia em 2016. Precisamos discutir as questões de participação pública em tomada de decisão também na América Latina.

ComCiência – E por que as pessoas devem participar das decisões sobre ciência e opinar sobre ciência?

Quintanilla – Porque é como participar do ar que se respira. Hoje, no século XXI, a ciência é um elemento central, assim como foi a agricultura há alguns séculos. A economia vive da ciência, a vida depende da ciência. A ciência está em todas as partes e a ideia é que as pessoas tenham acesso a ela, e possam decidir e influenciar essa ciência que os rodeia. As pessoas devem se beneficiar da ciência e se responsabilizar por ela. Devemos ter uma obrigação moral pela ciência que é produzida, porque estamos inseridos num contexto de cultura científica em que todos devem participar do desenho das políticas científicas, não só por um problema de economia, mas por uma questão de cultura geral.

ComCiência – Os cientistas estão preparados para essa participação da sociedade?

Quintanilla – Essa pergunta é difícil de responder. Os cientistas estão preparados, mas não todos. Há alguns que estão. Acabo de ver colegas meus de física e de geologia da Universidade de Salamanca que estão dedicando horas do seu tempo livre, incluindo nos finais de semana, para explicar o que eles estão pesquisando. Isso mostra que há cientistas que, sim, estão preocupados em divulgar o que estão fazendo. Um dos objetivos do nosso trabalho no Ecyt é justamente acostumar os cientistas à ideia de que as pessoas devem participar de suas atividades. E isso é uma coisa que está praticamente começando. Não está mais engatinhando, mas ainda está dando os primeiros passos.

ComCiência – Há quem diga que as pessoas não podem participar da governança de ciência e tecnologia porque não têm educação suficiente para entender a ciência, especialmente em países como o Brasil. Nesse caso, as feiras de ciência, como a Empírika, acabariam funcionando como complemento à educação científica?

Quintanilla – Pensar que as pessoas não têm condições de participar da governança de ciência é um erro. A ciência não é inacessível aos cidadãos e também não deve ser divulgada apenas em caráter de "diversão". Isso é um prejuízo platônico, eu diria, porque pressupõe espécies de castas de pessoas que podem e daqueles que não podem participar da ciência. Por isso, a metáfora do futebol de Carlos Vogt (leia o editorial desta edição) faz todo sentido: assim como no futebol, as pessoas podem participar da ciência, mesmo que não a pratiquem. É claro que se deve respeitar, apoiar e admirar o trabalho dos cientistas. Mas isso não quer dizer que os cidadãos não possam ter acesso àquilo que os cientistas fazem. O objetivo é conseguir que as pessoas entendam que a ciência é parte de sua vida. Não é apenas uma disciplina escolar ou uma profissão: a ciência é também parte da sua vida. Além disso, a ciência faz parte da cultura das pessoas e, por isso, elas têm condições de entendê-la. Mas melhor ainda seria se os cientistas pudessem explicá-la adequadamente. A ciência é como uma partida de futebol, mas os cientistas ainda jogam escondido. É preciso jogar em público. Nesse sentido, uma feira como a Empírika passa a ser um complemento no sentido dessa compreensão de que a ciência faz, sim, parte do dia a dia das pessoas.

ComCiência – Assim como as feiras de ciências, o jornalismo científico também tem um papel complementar na educação científica das pessoas?

Quintanilla – Penso que o jornalismo científico tem, sim, um papel de complemento à educação científica e não vejo problemas em dar um caráter mais didático a ele. Se você usa um conceito científico num texto jornalístico, você pode explicá-lo – e há espaço para fazer isso, especialmente nos meios de comunicação online. Sempre há uma possibilidade de se introduzir uma explicação de um termo, e eu não vejo mal nisso. Em notícias de esportes, sobre dopping, por exemplo, é comum que se coloque uma explicação sobre a substância que um atleta consumiu e o que o ela causa. Ninguém estranha isso. Podemos fazer isso sempre para explicar termos e para aumentar a educação científica das pessoas. Nós trabalhamos com jornalismo científico, temos uma agência de notícias na Universidade de Salamanca (a Dicyt, que é eletrônica e, inclusive, reproduz uma seleção de notícias da ComCiência) e estudamos, nas nossas linhas de pesquisa, o jornalismo científico. Fazemos isso continuamente. O problema é que muitos jornalistas acabam não explicando os termos científicos porque simplesmente não os conhecem ou entendem, porque têm pouco contato com os cientistas e com a ciência. Por isso, é válida a nossa preocupação em formar jornalistas especializados em ciência. A imprensa tem um papel central no processo de educação científica. Parece que existe uma tendência e uma tentação ao sensacionalismo no jornalismo científico, o que é muito perigoso, porque isso altera completamente a natureza da informação científica. Na Dicyt procuramos não dar relevância a notícias sensacionalistas. O objetivo da informação científica na mídia não é buscar escândalos. Quando os escândalos acontecem, obviamente devem ser noticiados, mas esse não deve ser o centro do jornalismo científico.

ComCiência – E a busca pelo sensacionalismo se torna um problema na relação entre cientistas e jornalistas, o que acaba dificultando a divulgação da ciência...

Quintanilla – Sim. Os cientistas deveriam pensar em facilitar a comunicação com os jornalistas para que as matérias sejam boas. Mas me parece que isso não é uma prioridade dos cientistas – e é normal que não seja. Penso que nosso foco de trabalho, nesse sentido, deve ser em formar especialistas em divulgação científica, ou seja, especialistas reais na comunicação da ciência. Eu acredito mais nisso do que na simples conversão de todos os cientistas em divulgadores em potencial.

ComCiência – Por causa dessa importância do jornalismo na cultura científica, os meios de comunicação são foco de estudos do Ecyt?

Quintanilla – Os estudos de percepção pública da ciência, em geral, buscam levantar indicadores, o que é bom, mas é importante notar que essas pesquisas fornecem informações muito enviesadas pelo conteúdo de ciência que as pessoas recebem dos meios de comunicação. Além disso, essas pesquisas têm problemas metodológicos: por exemplo, se alguém é questionado no meio da rua se tem interesse em ciência, a pessoa responde que sim, mesmo que nunca tenha sequer pensado em ciência. Já a análise de conteúdo de ciência nos meios de comunicação fornece uma noção mais precisa: a qual informação científica a sociedade está tendo acesso. E a análise do conteúdo dos meios mostra o que ronda a cultura científica das pessoas: se está tendendo ao sensacionalismo, às informações técnicas etc. Isso não aparece nas pesquisas de percepção pública da ciência, mas aparece nos meios de comunicação. Por isso, não podemos desprezar a mídia quando se fala em cultura científica.

ComCiência – Sobre a participação das pessoas em gestão de ciência e tecnologia, como estão os instrumentos de participação social em governança de ciência na Espanha?

Quintanilla – Há pouquíssimas experiências nesse sentido. Assim como a maioria dos países, ainda estamos na fase de análise e de realização de pesquisas e de estudos sobre percepção pública da ciência. Ainda consideramos os cidadãos como elementos passivos dos nossos estudos. Mas não há vias práticas de se realizar a participação das pessoas nas decisões. No Ecyt, estamos agora estudando as chamadas "conferências cidadãs de consenso" no tema de energia, que são mecanismos para se discutir em pequenos grupos de 30 ou 40 pessoas, dentre eles, cientistas e a população em geral. A ideia é que, ao final, exista um plano com conclusões obtidas em conjunto (ou não) que seja enviado a políticos. Isso é um instrumento muito importante que mostra que é possível o contato entre cientistas e não cientistas e, mais ainda, é possível o consenso. Os parlamentos devem fazer sistemas de consulta pública antes de tomar decisões sobre ciência e temas afins, como os Estados Unidos já faziam na década de 1970. Hoje isso quase não existe na Europa, com exceção de países como Dinamarca e Holanda, que têm modelos de conferências de consenso desde a década de 1980. É preciso incentivar essa ideia.