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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  no.123 Campinas nov. 2010

 

REPORTAGEM

 

Dos traçados pré-históricos ao mapeamento digital

 

 

Por Leonor Assad

 

 

A cartografia é o conjunto de estudos e operações científicas, técnicas e artísticas que, tendo por base os resultados de observações diretas ou da análise de documentação, permitem a elaboração de mapas. Passou a constituir-se uma ciência de fato com os gregos, em meados de 650 a.C. Mas fazer mapas é prática muito mais antiga, pois desde a pré-história o homem tenta se localizar no mundo, definir territórios, entender a organização dos espaços e registrar trajetos. Para uma sociedade, mapas são tão importantes quanto a escrita, e talvez sejam mais antigos do que ela. Traçados em fragmentos de pequenas tábuas feitas de argila e nas paredes de sítios arqueológicos sugerem que, há mais de 6000 anos, mapas eram utilizados para estabelecer territórios de caça e para gravar itinerários.

Em cartografia, um mapa é uma representação gráfica de determinado espaço geográfico. Rosely Sampaio Archela, professora da Universidade Estadual de Londrina (UEL), explica que um mapa é um modelo da realidade, uma forma de comunicar um conhecimento que se efetiva somente se o usuário, o leitor do mapa, extrair tal conhecimento ao lê-lo. "Para que a comunicação se estabeleça, é necessário que tanto o criador de mapas quanto o usuário possuam conhecimentos específicos de cartografia", salienta Archela.

Num mapa, signos e símbolos são utilizados para comunicar informações espaciais sobre aspectos naturais, sociais, culturais e políticos de uma área geográfica, miniaturizando o mundo que nos cerca. Com isso, a cartografia é, ao mesmo tempo, arte e ciência. Está relacionada com disciplinas como geografia, matemática, geometria e astronomia, mas envolve também um trabalho de criação humana que reflete a cultura e a história na representação do real, permitindo inúmeras leituras.

Os mapas expressam também a concepção que se tem do mundo ao longo dos tempos. Assim, os fenícios descreviam as áreas costeiras que visitavam, definindo itinerários percorridos e territórios. Nos mapas feitos por babilônios, a Terra era uma montanha que flutuava sobre as águas, sob uma esfera celeste fixa e sólida. Nos mapas antigos dos hebreus, a Terra era um círculo que repousava sobre dois pilares acima das águas. Já os egípcios colocavam a Terra no fundo de uma caixa que representava o Universo; o céu era a tampa da caixa e as estrelas estavam presas a ela. No extremo Oriente, mapas do mundo existiam desde o século V a.C., e a China era representada como um vasto império cercado de água. Os Maias tinham uma concepção astronômica clara e definiam os pontos cardeais por um sistema de cores, mas acreditavam que o mundo era circular e flutuava num grande mar, nas costas de um crocodilo. Os Incas do Peru possuíam um mapa de relevo e os Astecas traçavam mapas de cidades (leia artigo sobre as representações pré-colombianas nesta edição da ComCiência).

Séculos depois, os mapas produzidos após o descobrimento do Brasil representavam territórios do Novo Mundo recém-descoberto, com desenhos, chamados de iluminuras, de aspectos faunísticos, florísticos, náuticos, geográficos, mercantis, militares e etnográficos. As iluminuras conferiam valor estético aos mapas e preenchiam vazios de representação, pois muitas áreas, principalmente de regiões afastadas da costa, ainda não eram conhecidas. Algumas iluminuras eram representações imaginárias, mas outras eram feitas com base em informações. Baseavam-se em relatos e desenhos de viajantes e navegantes que tinham visitado as áreas mapeadas, em relatos de indígenas e em exemplares de plantas e animais levados para a Europa. Em casos raros, eram decorrentes da presença do próprio cartógrafo nas áreas mapeadas.

Atualmente, e sob a influência de novos recursos tecnológicos, conforme assinala Rosely Archela, mapas e outros documentos cartográficos têm sido elaborados em formato digital, utilizando computação gráfica, cartografia automatizada ou cartografia digital.

 

As bases científicas da cartografia

As bases matemáticas da cartografia moderna remontam a Tales de Mileto (por volta de 650 a.C.), Pitágoras (por volta de 500 a.C.) e Aristóteles (por volta de 350 a.C), que já intuíam que a Terra era redonda. Isso trouxe, pela primeira vez, o problema básico das projeções cartográficas, que é o de representar uma superfície curva em um plano. No século V a.C, Hecateu de Mileto teria elaborado um trabalho, nomeado "Descrição da Terra", resumindo os conhecimentos geográficos gregos da época, na forma de périplo: nele o mundo era redondo e chato como um prato, centrado no mar Mediterrâneo. Mas foi Eratóstenes, no século II a.C., o primeiro matemático da Antiguidade que encontrou a medida da circunferência da Terra com uma surpreendente precisão, utilizando a sombra projetada por objetos ao sol.

No século II d.C., Ptolomeu, astrônomo e geógrafo de Alexandria, calculou a latitude e a longitude de 8000 pontos na Terra. Muitos séculos depois, constatou-se que seus cálculos não estavam corretos. Mas suas cartas, conservadas pelos árabes, foram utilizadas por navegadores europeus na Renascença.

Na Idade Média, houve uma grande regressão científica, pois a Igreja Católica, que dominava a cultura e a política no mundo ocidental, rejeitava todas as bases científicas dos gregos, como a esfericidade da Terra e a presença de terras desconhecidas para o homem europeu. A cartografia adaptou-se aos dogmas religiosos. Nessa época, os mapas medievais, derivados do Orbis Terrarum dos romanos, apresentavam a Terra em três partes (Ásia, África e Europa), resultado da divisão, ocorrida após o Dilúvio, entre os três filhos de Noé. Jerusalém (o Oriente) era representada no alto dos mapas, dando origem à palavra orientação.

Foram os árabes que, retomando os trabalhos dos gregos e de Ptolomeu em particular, recuperaram o caráter científico da cartografia. O geógrafo e explorador Muhammad Al-Idrisi confeccionou, no século XII, um grande mapa mundi orientado em sentido inverso ao utilizado atualmente. Conhecido como a Tabula Rogeriana, vinha acompanhado por um livro, denominado Geografia, e constituía um sincretismo do saber geográfico da época.

Três séculos mais tarde, na Europa, o uso de vários instrumentos de navegação, como o astrolábio, a bússola, a balestilha e o quadrante, melhoraram a orientação em alto mar. Inicia-se a cartografia moderna. Foram desenhadas várias cartas náuticas, os portulanos, que descreviam precisamente as linhas de costas percorridas pelos navegadores da época. A cada viagem, os mapas incorporavam novas descobertas. Os mais precisos faziam o sucesso de novas viagens. Os reis da época consideravam alguns tão importantes, que os tratavam como segredo de Estado. Em 1507 surgiu pela primeira vez na Europa um mapa com a América: era a carta do mundo elaborada pelo cartógrafo alemão Martin Waldseemüller, em doze folhas.

Mas projetar uma superfície em um plano continuava sendo fonte de muitos erros. Até que, em 1569, Gerardus Mercator, matemático e cartógrafo flamengo, publicou um Atlas, reagrupando 18 cartas do mundo, no qual desenvolveu matematicamente a projeção cilíndrica do globo terrestre sobre uma carta plana. Nesse sistema de projeção, os meridianos e paralelos são representados por segmentos de reta perpendiculares entre si, e os meridianos são equidistantes. Isso faz com que a superfície da Terra seja cada vez mais deformada na direção leste-oeste, quanto maior for a latitude. Apesar das distorções, a projeção de Mercator revolucionou a cartografia da época e serviu de base para que, em 1950, nos Estados Unidos, fosse desenvolvida a projeção UTM (Universal Transversa de Mercator), uma projeção cilíndrica muito utilizada na cartografia contemporânea.

No século XVII, a cartografia era dominada pelos holandeses e Amsterdã tornou-se o centro europeu de produção de mapas. Mas, no século seguinte, os ingleses tomaram a dianteira. Surgem, nesse período, o primeiro telescópio parabólico, fabricado por Johan Hadley; um cronômetro marinho que permitia aos marinheiros calcular exatamente a longitude, criado por John Harrisson; o sextante, o teodolito e o barômetro, inventados por Jesse Ransden. Esses instrumentos, assim como as teses de Isaac Newton sobre o achatamento dos polos e o progresso da trigonometria, contribuíram para aumentar a precisão dos mapas.

No século XIX, os conflitos continentais impulsionaram o desenvolvimento da cartografia de grande escala. Melhoraram as técnicas de impressão e iniciou-se o desenvolvimento de um atlas universal e de cartas temáticas. Por volta de 1860, as operações fotogramétricas começaram a ser empregadas como instrumento de reconhecimento do terreno, quando câmaras fotográficas foram colocadas a bordo de um balão, mais tarde substituído por avião.

Rosely Archela explica que a aerofotogrametria e o sensoriamento remoto vêm mudando a cartografia, "não em seu objeto de estudo, mas quanto à adoção de novas metodologias e técnicas que fazem evoluir os conceitos estabelecidos anteriormente". Segundo a geógrafa da UEL, muitas práticas comuns no dia-a-dia de profissionais ligados à cartografia hoje tiveram origem entre as duas guerras mundiais do século XX. E acrescenta: "Com as operações fotogramétricas e o desenvolvimento da aerofotogrametria, em substituição aos tradicionais levantamentos topográficos, os mapas elaborados anteriormente foram ficando obsoletos, já que os sensores remotos, a começar pelas câmaras fotográficas, passaram a contribuir cada vez mais para o levantamento de dados".

 

Mapas como instrumento para compreensão da história

A evolução tecnológica na cartografia tem sido muito rápida. A cada dia surgem novos produtos cartográficos. Os mapeamentos por computador e os sistemas de informações geográficas exploram novas aplicações, com grande rapidez no processamento, na capacidade de armazenamento de dados, na flexibilidade de compilação e na visualização da informação, afirma Rosely Archela.

Esses avanços confirmam que não existe uma linguagem cartográfica única, universal e imutável. As técnicas de elaboração e impressão dos mapas variaram e seu estudo fornece um importante campo para outras áreas do conhecimento, como a história. Informações sobre as formas de produção, reprodução e distribuição dos mapas são úteis para a cartografia histórica. A historiadora Junia Ferreira Furtado, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, assinala em artigo publicado na revista Varia Historia, que todo mapa é um conjunto de signos ou símbolos historicamente construídos: "O estudo da cartografia permite a análise da formação e consolidação de um território, como ele foi compreendido e ocupado ao longo do tempo". A partir do entendimento das técnicas de medição do espaço, das noções de forma e de área que expressam, dos espaços que o mapa cobre e dos que deixa em branco ou preenche com um desenho ou uma iluminura, é possível entender como esses mapas eram lidos e compreendidos na época em que foram produzidos.

No Brasil, conforme salienta Rosely Archela, em trabalho publicado na Revista Brasileira de Cartografia, a história da cartografia inicia-se antes da descoberta de suas terras, "mas mudanças significativas, que se refletem nos produtos cartográficos, ocorreram ao longo do século XX". Iniciativas como a Biblioteca Virtual da Cartografia Histórica do século XVI ao XVII, disponível na Biblioteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional, e instituições como o Laboratório de Estudos de Cartografia Histórica da Universidade de São Paulo, o Serviço Geográfico do Exército, a Diretoria de Hidrografia e Navegação da Marinha do Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto Geográfico e Cartográfico, a mapoteca do Itamaraty, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu de Astronomia do Rio de Janeiro e o Centro de Referência em Cartografia Histórica da Universidade Federal de Minas Gerais, são exemplos importantes no trabalho de organização do acervo cartográfico brasileiro.