SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número119A invasão bárbara dos sentimentosPeleja índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Articulo

Indicadores

  • No hay articulos citadosCitado por SciELO

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Bookmark

ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.119 Campinas  2010

 

ENTREVISTA

 

Natacha Costa

 

 

Cristiane Paião

 

 

 

Com o objetivo de criar um amplo espaço educativo, estruturado por uma rede que une toda a comunidade e, assim, ampliar as possibilidades de aprendizagem e de melhoria da qualidade da vida urbana, a Organização Não-Governamental Cidade Escola Aprendiz vem, desde 1997, experimentando, desenvolvendo e divulgando o conceito de bairro-escola, estratégia que envolve cerca de 30 projetos diferentes focados em arte, cultura, educação, comunicação, tecnologia e articulação comunitária, e vem influenciando iniciativas e políticas públicas em todo o país. Formada em psicologia pela PUC-SP, Natacha Costa, diretora geral da ONG, atuou em diversos projetos, como o Axé, em Salvador (BA), e o Criança Segura, de São Paulo, até chegar ao Aprendiz, o qual dirige desde 2006. Nesta entrevista, ela fala sobre a importância de temas como cidadania, educação, arte e cultura para o conceito de qualidade de vida, e sobre como esses temas podem transformar para melhor a vida das pessoas.

Como o projeto Cidade Escola Aprendiz trabalha temas como cidadania, educação, arte e cultura?

Natacha Costa – O Aprendiz vem trabalhando há treze anos com um conceito que a gente chama de bairro-escola. O bairro-escola prevê a articulação do que a gente chama de comunidades educativas. A gente promove processos de articulação comunitária que tenham como foco os potenciais da comunidade e, a partir dessa articulação, busca conseguir melhores condições para aprendizado, para garantia de direitos da criança e do adolescente. Nosso foco é a criança e o adolescente. A gente começou trabalhando com oficinas, na Vila Madalena, e aí passou a perceber que todas as questões que as crianças nos traziam demandam um trabalho e um olhar interdisciplinar. Era muito importante que a gente pudesse conversar com a escola onde essa criança ia, conversar com o posto de saúde, com o conselho tutelar, com as famílias. Enfim, esse diálogo com os outros atores que faziam parte da vida da criança era fundamental para garantir condições para o desenvolvimento integral dessas crianças e adolescentes. E é dessa experiência prática que nasce o conceito de bairro-escola. É nessa perspectiva, da articulação desses outros agentes, desses outros atores, que foi se criando uma rede local, que a gente chama Bairro-Escola Vila Madalena, uma rede local com a implicação de todos esses agentes, a partir de uma série de estratégias que fomos desenvolvendo. Esse conceito foi sendo pesquisado pelo Unicef, por pessoas de outros estados, de outras cidades, pelo Ministério da Educação, e foi paulatinamente pautando uma série de políticas publicas que têm essas características de induzir a formação de redes locais, a formação de redes para apoio da criança e do adolescente, a articulação das escolas com outras oportunidades educativas que a cidade oferece.

Essa ideia do bairro-escola abrange qualidade de vida para as crianças e adolescentes e também para toda a comunidade envolvida?

Costa – Qualidade de vida, na nossa concepção, está intimamente ligada ao capital social de uma comunidade. A capacidade de uma comunidade de tecer relações, de estabelecer conexões, e de construir objetivos comuns, construir ações coletivas. Essa é a concepção que pauta toda a nossa ação. A ideia de que uma comunidade que se articula garante melhores condições para as pessoas se desenvolverem como indivíduos e como sujeitos sociais, coletivos. Nessa perspectiva, tem toda uma questão do senso de pertencimento que esses sujeitos passam a ter em relação à sua própria comunidade, a possibilidade de se sentirem refletidos nas decisões dessa mesma comunidade. O que a gente vem fazendo, aqui, na Vila Madalena, é construir todo um percurso formativo para a criança e o adolescente que implica necessariamente a participação dos adultos também. Nós temos como foco a criança e o adolescente, mas a gente entende que nenhuma comunidade dá conta das suas crianças e adolescentes se não puder dar conta também dos seus adultos, se não puder garantir uma articulação entre todos esses agentes. O que a gente vem fazendo? Nós temos um percurso formativo, as crianças começam com quatro anos de idade, participando de uma série de atividades no Aprendiz, mas também em outros espaços da comunidade, que oferecem atividades de circo, de esportes. Elas frequentam museus, teatros, cinemas do bairro, da região.

Há outros projetos associados ao bairro-escola?

Costa – Tem o projeto Escola na Praça, tem outro que se chama Redes Urbanas e tem também a Agência Comunitária de Notícias. As crianças têm a oportunidade, quando se tornam adolescentes e jovens, de optar pela formação em comunicação ou pela formação em artes e cultura. Fazemos programas que vão se especializando nas áreas que a gente acha que são mais da expertise do Aprendiz. Temos também uma série de oportunidades que são articuladas com a participação de outros parceiros. Tem a formação em bartender, tem o próprio trabalho no restaurante. Enfim, uma série de outras oportunidades que vão surgindo. E todo esse trabalho de articulação é feito com outros agentes do bairro também. Nós temos, por exemplo, um encontro quinzenal, que se chama Auto-Formação Local, que é um grupo composto por moradores e representantes das mais diversas instituições dessa região. Tem gente da USP, da PUC, do posto de saúde, das escolas, do conselho tutelar, de outras organizações sociais locais, que se reúnem quinzenalmente para discutir como têm se desenvolvido essas ações e como elas podem se articular e podem se potencializar. Do debate desse conselho local surgem uma série de outras oportunidades nesse percurso formativo para as crianças e para os jovens, e não apenas do ponto de vista formativo, mas do ponto de vista de outras necessidades, de saúde, de direitos sociais. O que procuramos fazer é a articulação com os especialistas dessas outras áreas, porque entendemos que nenhuma instituição pode dar conta de todas as áreas. Do ponto de vista das crianças que atendemos, temos essa articulação muito forte com o posto de saúde, por exemplo. A coordenadora do núcleo faz parte do posto de saúde, e o atendimento das crianças é feito de maneira muito próxima, muito compartilhada. O que a gente vai criando são essas conexões com os outros agentes do bairro, tentando formar uma rede de apoio a essas crianças.

Todo esse trabalho formativo das crianças e jovens, aliado a essa articulação entre os atores da comunidade, está fortemente ligado à noção de cidadania, não é?

Costa – A questão da cidadania, para nós, é absolutamente um valor que está colocado em toda a participação, em todos os projetos do Aprendiz. A gente entende que a participação das pessoas, como sujeitos ativos na construção das redes, na construção da suas condições de vida, é um valor fundamental. A questão da participação democrática está diretamente ligada à cidadania, porque não consideramos só o sujeito de direito, no sentido de que é beneficiário das políticas públicas, mas um sujeito que constrói de verdade as suas condições, as suas possibilidades de vida. E nessa perspectiva, a questão coletiva é muito importante. E educação e cultura, para nós, são pêndulos de todo o processo. Entendemos que uma comunidade que tenha educação e cultura como eixos transversais consegue garantir as condições para o desenvolvimento integral dos sujeitos. A educação e a cultura são elementos estruturantes de todo o processo.

Como é o projeto Escola na Praça?

Costa – As crianças vêm no horário complementar à escola. Elas frequentam as escolas do bairro, e vêm à praça no horário complementar. Aqui elas desenvolvem projetos que têm a ver com as necessidades do bairro, com as questões que elas mesmas levantam em relação às suas vidas e à toda a comunidade. Nós temos um projeto, agora, sobre reciclagem. As crianças pesquisaram todo o processo de uso e descarte do lixo, pesquisaram o eco-ponto, que existe na Vila Madalena, pesquisaram como é que funciona, e produziram uma série de peças de informação para trabalhar esses elementos com a comunidade. Essas crianças ficam conosco desenvolvendo projetos com essas características e participam de atividades em outras organizações do bairro também. Elas fazem circo na escola de circo, fazem skate na praça, uma série de outras atividades, nesse tempo complementar. Além disso, nós temos um trabalho com as escolas para discutir as questões pedagógicas, para ver como elas estão se desenvolvendo, como é que as escolas conduzem as questões que elas trazem. É um trabalho de articulação com esses outros agentes.

Além da comunidade local, há um diálogo com o poder público?

Costa – O Aprendiz tem sido muito procurado para pautar especificamente políticas públicas relativas à educação integral, porque a gente influenciou muito fortemente a construção da política de educação integral em três cidades, Sorocaba, Nova Iguaçu e Belo Horizonte, que constituíram suas políticas fazendo com que as escolas se articulassem a outros agentes e a outros espaços educativos da comunidade, para criar redes locais em que as crianças pudessem ser atendidas em tempo integral. Mas não somente dentro da escola. Que pudessem estar nas suas comunidades, sendo atendidas pela comunidade como um todo. Isso pautou a construção dessas políticas nessas três cidades, e isso teve como consequência que o MEC elaborasse uma política nacional que se chama Mais Educação, da qual participamos ativamente da formulação. É uma política que tem a perspectiva de atender, até o final do ano, mais de dez mil escolas em todo o país. O Mais Educação foi criado exatamente no conceito de bairro-escola. Eles mandam recursos para as escolas formarem redes nas suas comunidades, redes de atendimento socioeducativo para as crianças. Você tem a articulação de outros agentes locais, articulação das universidades, trazendo atividades para as crianças e toda a construção desse tempo integral a partir dessas múltiplas referências. Essa é, hoje, a principal política nacional que o Aprendiz pautou. Desde 2007, isso está em construção. Com esse projeto, a perspectiva é alcançar outras cidades, outros estados. Aquelas três cidades foram desenvolvendo seus projetos muito inspiradas no Aprendiz e com a nossa participação. A partir das nossas experiências, o MEC adota isso como política federal, e passa a induzir a política de ação integral, a partir dessas referências.

Há o risco de descontinuidade em caso de mudança no governo?

Costa – Acreditamos que o projeto não será alterado. Na verdade, isso já virou lei. Acredito que deve ter continuidade. É claro que tudo depende da equipe técnica que vai tocar. Sempre temos um problema muito sério de descontinuidade de políticas publicas, porque sabemos que depende mesmo de quem está à frente delas. Mas tem uma segurança institucional, uma lei. O planejamento orçamentário vai ter que ser feito com base nisso. Eu acho que tem alguma segurança, mas nunca temos segurança suficiente. Isso depende de quem vai tocar.

E as políticas públicas que já vinham sendo adotadas, como você avalia?

Costa – Qualquer avaliação sobre as políticas públicas no Brasil passa por duas questões, dois desafios fundamentais. Primeiro é essa questão da descontinuidade, a gente precisa superar essa lógica. E o segundo elemento importante é a desarticulação das políticas públicas em geral, em especial as políticas sociais. Elas não são articuladas, não dialogam com as necessidades da comunidade, dos indivíduos, dos sujeitos. São sempre feitas para uma massa amorfa, como se todas as pessoas precisassem do mesmo, e isso recai sobre a vida das pessoas de maneira muito indiscriminada. O que precisamos é fazer políticas públicas que possam se enraizar nos territórios, que possam contar com a participação das pessoas na tomada de decisão em relação aos recursos que chegam e de que forma eles vão ser escoados. Como é que essas comunidades vão lidar com esses recursos que vêm da política. O grande problema que temos é esse: as políticas públicas não tomam forma no território, elas aparecem de maneira muito desarticulada. O bairro-escola tenta propor uma superação disso. O Joãozinho é atendido na escola, no posto de saúde, no conselho tutelar, no hospital público. Ele é o mesmo, mas em cada uma dessas instituições, ele é atendido de uma forma: ele é o estudante em uma, o paciente em outra. O que precisamos, na verdade, é poder olhar para a integralidade desse sujeito. Para a criança se desenvolver, é preciso olhar para a integralidade dela. O João é um sujeito integral. Isso só é possível se a política pública estiver enraizada no território, se ela puder ser operada no território. Uma solução que o Mais Educação deu, e que está inspirada no conceito de bairro-escola, é a questão dos Comitês Intersetoriais de Apoio à Educação Integral. São comitês locais que tomam decisões em relação ao programa, que entendem e compreendem quais são as necessidades dos alunos, buscam as soluções coletivamente. O papel da política pública é poder induzir essa construção de autonomia das comunidades, e não definir a priori, de dentro de um gabinete, como é que as coisas vão operar. Esse é um paradigma de gestão pública que precisamos construir e que é exatamente o oposto do que a gente tem na prática. O que bairro escola procura construir – e eu acho que isso tem tudo a ver com qualidade de vida – é um processo de gestão de políticas públicas que dialogue de verdade com as necessidades das pessoas. E as pessoas estão nas comunidades, elas estão nos microterritórios, não estão em outro lugar. Precisamos criar um novo paradigma mesmo, em que a gestão pública consiga ser de baixo para cima, e não de cima para baixo, que as comunidades possam tomar decisões em relação a como executar os programas, enfim, que tipo de recurso lhes interessa, que tipo de aposta elas querem.

Mais do que preencher uma lacuna do poder público, então, a ação das ONGs deve ser de parceria com ele?

Costa – Primeiro, precisamos entender que ONG é uma categoria muito ampla. Existe todo tipo de organização, de todo tamanho e intenções, inclusive as ONGs sérias e as não sérias. A gente tem toda uma multiplicidade de características e identidades. Falando das ONGs sérias, das profissionais, você tem, inclusive, diferentes níveis de profissionalização, o que é muito importante. O terceiro setor sofreu um processo de profissionalização recente muito interessante e que eu acho que a gente tem que reconhecer e considerar. A gente entende, no Aprendiz, que a ONG tem dois papéis. Primeiro, tem que ser articuladora, não pode querer trabalhar sozinha, não pode querer dar conta de tudo. Nós vemos, às vezes, essa coisa da "minha criança", do "meu aluno", do meu isso, do meu aquilo, uma crença, que consideramos deslocada, de que qualquer organização pode dar conta do sujeito como um todo. Isso cria um problema muito grave, a desresponsabilização do Estado, o que às vezes implica na desresponsabilização das famílias e que é artificial, porque nenhuma organização dá conta de nenhum sujeito. As organizações têm que trabalhar de forma articulada, têm que trabalhar entre si, têm que poder fomentar isso que chamamos de capital social, e permitir que as redes locais possam, de fato, criar condições para a melhoria da qualidade de vida dessas pessoas e possam sustentar essa melhoria. Se o sujeito depende exclusivamente de uma única organização, ele fica muito vulnerável, fica num grau de dependência que nenhuma organização tem condições de garantir, e que nem é bom, na verdade, para esse sujeito. A gente tem, sim, que trabalhar com redes locais e com o fortalecimento das relações nos territórios, de forma que os sujeitos possam de fato se mover na direção da sua autonomia e da sua emancipação, porque não adianta o sujeito deixar de depender do Estado para depender de uma organização social, não faz sentido alimentar relações de dependência. Esse é um ponto. O segundo ponto, que para nós é fundamental, é que as organizações possam desenvolver uma liberdade, uma autonomia para criar, para experimentar. O Aprendiz se reconhece como laboratório pedagógico. A gente experimenta o tempo inteiro novas formas de fazer educação, novas formas de cultura, novas formas de trabalhar com a tecnologia e de fazer articulação comunitária. Temos uma responsabilidade de usar esse espaço que temos para criar, para experimentar, mas na perspectiva de pautar política pública. Não pode ser só para nosso próprio desenvolvimento. As organizações e o terceiro setor têm a obrigação de pautar política pública, têm a obrigação de estar presente no debate público, seja nos conselhos, seja nos GTs, nos núcleos de trabalho, dos ministérios, das secretarias. A gente tem essa obrigação, como sociedade civil organizada, de pautar a formulação de políticas públicas, porque somos nós que estamos na ponta. A gente está ali com as crianças, a gente está com os jovens, com os pais, a gente está com as escolas, com as comunidades. Temos a obrigação de compartilhar isso para a sustentação de políticas públicas, porque são elas que garantem, de fato, o direito das pessoas, não são as ações pulverizadas das organizações. Eu acho que esse saldo das experiências das organizações é fundamental, tem que continuar existindo. Mesmo num Estado ideal, as organizações têm que continuar existindo, porque tem uma tensão que a gente coloca, tem uma série de questões que a gente pode de fato resolver, elaborar, pesquisar, o que é sempre muito importante. Assim como a universidade é fundamental, não pode existir por existir, só para ter o seu espaço de pesquisa e desenvolvimento. Tem que ser para pautar política pública, porque é isso que garante o direito das pessoas de fato, que garante que as pessoas tenham acesso ao que lhes é de direito.