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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.119 Campinas  2010

 

ARTIGO

 

Ecoturismo, qualidade de vida e artesanato de renda irlandesa em Sergipe

 

 

Érika Santana Melo Martins; Maria Rosane Prado Almeida

 

 

O município de Divina Pastora, no estado de Sergipe, é marcado pela atividade do artesanato. Por tradição, várias artesãs bordam a renda irlandesa. Originada na Idade Média, no continente europeu, ela foi trazida para a localidade pelas missionárias irlandesas. Desse modo, se fez necessário analisar a importância da atividade das rendeiras, o convívio e a organização desse grupo, as tipologias das rendas, sua forma de produção e confecção. Busca-se conhecer os ganhos provenientes dessa atividade e também a importância e influência desse artesanato no modo de vida da comunidade, assim como a produção desse artesanato como uma alternativa para o desenvolvimento do ecoturismo no município.

O ecoturismo, é importante ressaltar, utiliza o patrimônio natural e cultural de forma sustentável, incentivando sua conservação e buscando a formação de uma consciência ambientalista. O turismo gera movimentação de divisas e desperta a população para a busca de conhecimentos, a valorização, a conservação, o beneficiamento e o crescimento da autoestima.

Sergipe é um estado com quase 22 mil km² de área e com 75 municípios divididos em 13 microrregiões econômicas. Dentre elas, encontra-se a microrregião do Cotinguiba, composta por onze municípios, na qual está inserido o município de Divina Pastora, que faz parte do polo turístico dos Tabuleiros Costeiros, sendo a principal região da renda irlandesa. Esse é um dos cinco polos turísticos criados pela Secretaria do Estado de Turismo para melhor divisão dos recursos advindos do Programa de Desenvolvimento do Turismo do Nordeste (Prodetur-NE). Divina Pastora está localizada a 39 km da capital sergipana. As mulheres que habitam o município bordam variadas rendas, principalmente a renda irlandesa.

 

 

As missionárias irlandesas que aportaram no estado de Sergipe trouxeram a arte do saber fazer a renda e difundiram-na para três mulheres e irmãs que se transformaram em matriarcas no ensinar a renda na cidade. Dona Sinhá (Ercília), Marocas (Maria Engrácia) e Dina (Berenice) aprenderam a técnica e transmitiram-na, segundo relatos das próprias rendeiras, para as mulheres da cidade. Hoje essas mulheres oferecem um artesanato rico em detalhes e tiram renda dessa renda, na busca de uma melhor qualidade de vida, mas percebem que os gestores municipais e a maior parte da população pouco conhecem tal riqueza cultural.

Contudo, o ecoturismo, na sua essência, desperta a comunidade para o aprimoramento da suas competências e habilidades na arte, valoriza, preserva, conserva, beneficia e faz crescer a autoestima no local. Por isso, a pretensão deste artigo é ser mais um instrumento de estudos e de promoção desse artesanato que tem beleza, é único e tem originalidade.

O artesanato é algo próprio do turismo cultural, pois está presente em um grande acervo das culturas locais. Trata-se de trabalho manual, da produção de objetos pertencentes à chamada cultura popular. Portanto, fazendo uma ligação entre o ecoturismo e o artesanato, surge a questão da qualidade de vida na comunidade proporcionada pela renda gerada pelo turismo e, consequentemente, pelo artesanato. A qualidade de vida está relacionada ao ambiente em que se vive, ou seja, uma infraestrutura social, principalmente pública, capaz de atuar em benefício do bem comum.

O intuito de estudar sobre esse assunto é contribuir de alguma forma para a diminuição da desvalorização e da falta de reconhecimento desse artesanato e propor um espaço de continuidade para essa atividade, garantindo às rendeiras ganhos mais condinzentes com a riqueza e a delicadeza dos trabalhos que executam com maestria e perfeição, num mundo que se globaliza mais a cada instante.

 

 

Esse trabalho artesanal é tão importante para a cidade e para o país que no dia 27 de novembro de 2008 a renda irlandesa foi reconhecida como Patrimônio Cultural do Brasil pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O modo de fazer a renda irlandesa produzida em Divina Pastora foi incluído no Livro de registro dos saberes , e o município surge como principal território da renda irlandesa no país. Nesse local se econtraram os elementos que culminaram com a adaptação do ofício (vinculado, originalmente, à aristocracia) pelas rendeiras sergipanas, que normalmente são mulheres humildes e que reinventaram a técnica, o uso e o sentido desse saber fazer.

A história da renda irlandesa começa muitos antes do que imaginam as rendeiras que difundiram essa técnica na cidade. Seus primeiros registros datam do século XV. Quando o bordado estava se tornando repetitivo, houve inovação por parte das artesãs medievais, que começaram a alterar a forma de fazê-los, levando à descoberta da renda de agulha. Foi na Itália que surgiu, além de outras rendas, a irlandesa, que apesar de ser assim chamada, foi repassada pelas missionárias da Itália às missionárias da Irlanda, que posteriormente chegaram ao Brasil e difundiram a técnica em Divina Pastora.

Segundo relatos das rendeiras, quem introduziu a renda irlandesa em Sergipe foi Dona Ana Rolemberg, já falecida, que aprendeu com Dona Violeta Sayão Dantas e a ensinou a Júlia Franco. Esta, por sua vez, a transmitiu a Marocas, Ercília e Sinhá. Estas duas primeiras são tias de Dona Alzira, que aprendeu a arte de rendar aos dez anos de idade, ao mesmo tempo que sua prima, Dona Lourdes. As duas, Alzira e Lourdes, até hoje ensinam as mulheres jovens da cidade.

A renda irlandesa é uma das modalidades da renda de agulha, sendo o instrumento básico para transformação dos cordões de lacê e das linhas mercerizadas em peças deslumbrantes, que mais parecem obras de arte. Além da agulha, as rendeiras usam uma almofada ou qualquer objeto que dê suporte para o feitio da peça, uma tesourinha para cortar os alinhavos, e um dedal – embora este último artefato seja o menos utilizado, porque elas dizem que com ele, não sentem a renda sendo feita por suas mãos.

Qual a importância de se trabalhar as dimensões do artesanato, sua inserção na comunidade e seu papel na qualidade de vida dessas pessoas? No Brasil, segundo o artista paraibano Raul Córdula, existem dois tipos de política do desenvolvimento do artesanato: a da disseminação de mercados turísticos de artesanato e a tentativa de inserir o artesão no mercado formal de trabalho. Córdula acredita que ambas são devastadoras, pois tirariam do artesão a autonomia e a força de sua atividade, drenariam a economia e fariam o artesão desacreditar de seu futuro.

 

 

Os defensores do ecoturismo , por outro lado, o veem como uma iniciativa que visa o desenvolvimento das comunidades locais, e estas, por sua vez, o percebem como um meio para melhorar sua qualidade de vida . O ecoturismo é mais uma alternativa de renda para essas rendeiras que, ao longo da história, já substituiram o trabalho na roça e nos canaviais pela agulha e o lacê. Substituir o trabalho pesado por um trabalho delicado como o fazer renda irlandesa se tornou algo prazeroso para elas.

Na cidade, não há alternativas de divertimento ou atrativos naturais. Então, a confecção de renda irlandesa veio pra ocupar esse espaço ocioso e, por isso, é comum ver as mulheres produzindo suas peças em plena calçada das casas ou na praça principal da cidade debaixo da árvore, conversando com as colegas que também rendam, ou até mesmo na associação onde se encontram para conversar, enquanto outras, do lado de fora, observam as idas e vindas das pessoas que transitam pela cidade.

Por causa da globalização e da necessidade de se adequar às modernidades impostas pelo capitalismo, as rendeiras tiveram que recriar seu trabalho e criar algumas peças para auferir ganhos um pouco maiores. Antigamente, as peças eram feitas apenas com duas cores de cordão de lacê: o branco e o dourado. Hoje, elas aproveitam outras cores para fazer artigos que impressionam todos os tipos de públicos, como o vermelho, variadas tonalidades do rosa e amarelo, o verde escuro, entre outras. Com elas, produzem peças que estão em evidência, como capinha de celular, colares, broches, brincos, vestidos, pulseiras, apliques de roupa, golas de blusa, arranjos de cabeça, bolsa-carteira, entre outras peças que estão agradando muito variados públicos, principalmente estilistas da região Sudeste.

Um levantamento realizado nos locais onde são comercializadas as peças de renda de Divina Pastora mostrou que o turista, na maioria das vezes, desconhece a origem da renda e como ela é confeccionada. Muitos comerciantes atuam como atravessadores, que compram as peças diretamente das rendeiras a preços baixos e as revendem em seus espaços com grandes lucros.

Poucos são os turistas que têm a oportunidade de presenciar uma rendeira trabalhando em sua renda. Não há um roteiro oficial que englobe a cidade de Divina Pastora e que inclue visitas às suas rendeiras. Os roteiros oficiais de turismo cultural existentes no estado são apenas o de Laranjeiras, o de São Cristóvão e o dos cânions de Xingó – que abrange a visitação ao Museu Arqueológico de Xingó –, os quais recebem toda a atenção e recursos advindos das esferas estaduais e federais. Porém, mesmo sem essa atenção oficial, a renda irlandesa pôde ser vista por milhares de brasileiros, quando a atriz Ana Paula Arósio apareceu no primeiro capítulo da minissérie Mad Maria , transmitida pela Rede Globo: seu vestido era todo em renda irlandesa e foi confeccionado pelas rendeiras de Divina Pastora.

O ecoturismo poderia vir como uma nova alternativa de preservação e promoção desse patrimônio cultural do Brasil. Através de sugestões e medidas sustentáveis, como a criação de um roteiro cultural ou de um roteiro integrado com Laranjeiras e/ou São Cristóvão, o poder público poderia contribuir para uma maior divulgação da arte da rendeira de Divina Pastora. Outro ponto seria o fortalecimento do associativismo entre as rendeiras. Estratégias para tornar mais eficazes as vendas das peças e a compra de matéria-prima, e para consolidar as bases contábeis e administrativas de suas atividades, o que poderia proporcionar um aumento da clientela, auxiliariam também no desenvolvimento sustentável desse patrimônio.

É preciso que, agora, com o reconhecimento como patrimônio cultural do Brasil pelo Iphan, os gestores públicos e a população sergipana valorizem mais esse artesanato e deem condições melhores para as rendeiras trabalharem. Elas precisam ser respeitadas. A comercialização desses produtos deve ser intesificada através de um projeto em que elas não precisem vender as rendas através de atravessadores e que haja venda não só por encomendas, mas sim diretamente para turistas e por outros mecanismos que fortaleçam a economia das rendeiras. É preciso também visar a busca de estratégias de divulgação da renda e da associação das rendeiras, de melhorias das condições de trabalho e de ampliação da geração de renda, para que, assim, a renda irlandesa realmente gere renda para essas rendeiras.

Érika Santana Melo Martins e Maria Rosane Prado Almeida são formadas no Curso Superior de Tecnologia em Ecoturismo do Centro Federal de Educação Tecnológica de Sergipe e foram orientadas, na pesquisa com as rendeiras, por Amâncio Cardoso Santos Neto