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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.118 Campinas  2010

 

RESENHA

 

As ruínas de Detroit

 

 

Rafael Evangelista

 

 

 

Deslocalização industrial ajuda a explicar como a capital do automóvel hoje ostenta desemprego pior que o brasileiro e prédios de cidade-fantasma

Um de seus apelidos é Motor Town (cidade do motor), que levou à corruptela motown, dando nome à gravadora que trouxe a música negra estadunidense aos ouvidos do mundo. É em Detroit que se localizam as principais operações das Big Three, as hoje convalescentes Ford, GM e Chrysler, mas que nos anos 50, no ápice da indústria do automóvel dos EUA, fizeram da cidade a quarta maior daquele país, com 1,8 milhão de habitantes apenas no município propriamente dito. Hoje, no entanto, esse número caiu para surpreendentes pouco mais de 900 mil e a cidade tem uma taxa de desemprego de quase 30% - que chegaria a 50%, de acordo com fontes não oficiais.

As fotos a seguir retratam as consequências de dois processos simultâneos. O primeiro, datado da década de 60, reflete o abandono do centro da cidade pela classe média. Acuada pelo aumento da violência, por sua vez derivada de um processo agudo de segregação racial e da consequente reação a isso, a população de melhores condições econômicas se dirigiu ao subúrbio, enquanto mantiveram seus empregos na região central. Porém, duas décadas mais tarde começa o declínio da indústria automobilística e, em decorrência desse processo, a perda de boa parte dos empregos localizados em sua capital. As imagens mostram prédios suntuosos, completamente abandonados e arruinados pela decadência da atividade, que é o principal combustível da cidade.

 

 

 

 

 

 

 

 

Outras imagens podem ser vistas no website dos fotógrafos Yves Marchand e Romain Meffre, especializados em retratar ruínas industriais.

Contudo, uma visão mais concreta - talvez por procurar menos o belo na tragédia e deter-se no irônico - dos efeitos da decadência industrial está em um documentário de pouco mais de vinte anos atrás. Roger & Eu, de Michael Moore, traz todas as marcas do cinema que o notabilizaria, tanto positivamente como negativamente. Porém, talvez por ser seu primeiro trabalho e também o mais pessoal, Roger & Eu é mais contido e por isso mais explicativo.

O cenário não é propriamente Detroit, onde fica a sede da GM, mas Flint, a cidade onde a GM nasceu e que fica a uma hora de carro dos escritórios.

No final da década de 80, Roger Smith, o então presidente da companhia, decide fechar diversas plantas da GM e levá-las a outros países, com trabalhadores recebendo salários menores. A ação seria uma resposta à forte entrada da concorrência japonesa no mercado estadunidense, derivada das primeiras medidas de abertura neoliberal de Ronald Reagan. A competição, que em tese deveria levar a uma melhoria da produtividade, levou apenas a uma diminuição dos salários e a um aumento da lucratividade para os acionistas.

O efeito na cidade é desastroso. Quando da realização do filme, as demissões esperadas chegavam a atingir trinta mil funcionários. Hoje, somando-se os efeitos da última crise, o número chegaria a oitenta mil. Entre a década de setenta e oitenta a população caiu 20% e, nas duas décadas seguintes, vem caindo a um ritmo de 10%.

Moore, ao mesmo tempo em que insistentemente tenta entrevistar o presidente da companhia, acompanha o processo de despejo de diversas famílias, desempregadas e sem condições de pagarem seus aluguéis. Mostra ainda algumas patéticas tentativas de reerguer a cidade, como quando o poder público injeta grandes somas de dinheiro em isenções fiscais para hotéis que vão à falência poucos anos depois.

Um dos pontos fortes do filme é o sarcasmo com que o diretor retrata a insistência dos mais ricos em negarem a decadência do município e o papel da deslocalização do trabalho no processo. Velhinhas jogando golfe em um requintado clube de campo falam da preguiça dos desempregados em buscarem novos trabalhos. Celebridades chamadas à cidade - algumas patrocinadas pela GM - repetem o mantra da "crise como nova oportunidade", do "nunca desistir" e culpabilizam os indivíduos pelo fracasso em lugar de olharem para o sistema. O porta-voz da GM afirma peremptoriamente a ausência de obrigação moral ou compromisso da empresa com a localidade que a abrigou desde o seu nascimento.

Vinte anos depois, a ironia está em perceber que foi esse mesmo processo de abertura econômica desenfreada e falta de compromisso com o local que levaram as antes inabaláveis indústrias automobilísticas a pedirem auxílio ao Estado. Ajudaram a enfraquecer seu mercado interno ao fazerem o possível para jogarem a margem de lucro no limite. Acabaram reféns de uma ciranda financeira artificial, que ruiu como um castelo de cartas.