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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.117 Campinas  2010

 

ARTIGO

 

Subsídios para análise dos desastres

 

 

Por Marcos Antônio Mattedi

 

 

O interesse crescente da opinião pública sobre a questão dos desastres indica que vulnerabilidade e risco constituem uma das características mais marcantes do mundo em que vivemos. É por isso, inclusive, que noções como desastres, hazards, catástrofes, risco, vulnerabilidade, mas também resiliência tornaram-se cada vez mais usuais para tentar entender a época em que vivemos. Podemos pensar, inclusive, todo o conjunto de informações produzidas e sistematizadas nos estudos sobre desastres em centros como Disaster Center Research da University of Delaware, o Natural Hazard Center da University of Colorado at Bolder, o Centre for Research on the Epidemology of Disasters da Universidade Católica de Louvain, a International Strategy for Disaster Reduction da ONU, como uma espécie de introspecção que a sociedade moderna efetua sobre o sentido do seu desenvolvimento, com o propósito de criar mecanismos que nos permitam conviver com os riscos, ou mais precisamente, nos permitam desenvolver dispositivos materiais e subjetivos para confrontar os desastres.

As formas como os desastres foram sendo representados e enfrentados historicamente constituem um indicador por meio do qual podemos avaliar o significado do interesse público pelo tema da segurança na atualidade. Nas sociedades pré-industriais, por exemplo, a insegurança tomava a forma de "perigos naturais" e, dessa forma, eventos como os tremores de terra, as erupções vulcânicas, as inundações, as secas, etc., eram representados culturalmente como fenômenos produzidos pela natureza, pois sua ocorrência era atribuída a forças externas à sociedade. Com o surgimento da sociedade industrial, as representações das origens, consequências e características dos desastres mudaram, passando a depender de forças sociais. Portanto, na sociedade moderna, as causas das ameaças podem ser identificadas e suas probabilidades calculadas em termos estatísticos, o que torna a sociedade responsável pelos impactos.

O agravamento do problema dos desastres vem se constituindo numa das questões mais desafiadoras para a sustentabilidade do processo de desenvolvimento socioeconômico nas últimas décadas. Desde 1900, mais de 9 mil desastres foram registrados no banco de dados EM-DAT do Centre for Research on the Epidemology of Disasters (CRED) da Universidade Católica de Louvain, sendo que mais de 80% ocorreram nos últimos 30 anos.

 


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Porém, para entender os desastres, é preciso também verificar onde eles ocorrem, mais precisamente, a distribuição espacial da ocorrência dos desastres. Segundo o informe mundial do United Nations Development Programe (PNUD), "Reducing disasters risk: a challenge for development", 75% da população mundial vive em zonas que foram afetadas pelo menos uma vez entre 1980 e 2000 por um terremoto, um ciclone, uma inundação ou uma seca 1. Muito embora, frequentemente, os riscos de desastres estejam ligados às características geofísicas e meteorológicas de cada região. Quando se considera, por exemplo, os impactos humanos dos desastres, verifica-se que estes provocam mais impactos em regiões onde existe maior concentração populacional. Nos últimos trinta anos, aproximadamente 88% de pessoas mortas e 96% do total de perdas reportado vivem na Ásia e na África. Isso indica que a maior parte das mortes e das perdas diretas se concentra em países em desenvolvimento, sem considerar as mortes provocadas por danos indiretos, resultantes do aumento da desnutrição, da pobreza e da deterioração das condições de vida, saúde e outros serviços básicos.

 

 

Os dados disponíveis indicam que alguns grupos sociais são mais vulneráveis que os outros. Isso indica que os desastres não podem ser examinados isoladamente, mas somente por meio dos filtros contextuais que definem como as populações compreendem e reagem a esses fenômenos. Esse processo gera outro, o de institucionalização do risco: perdas provocadas por desastres são confrontadas por ações parciais que favorecem a ocupação de áreas de risco 2, também descrito como ciclo do desastre: desastres-dano-reparação-desastres 3. Consequentemente, os indivíduos marginalizados são incapazes de efetuar mudanças em suas condições de vida. Portanto, o aumento da população, as desigualdades na distribuição dos recursos, a marginalização de grupos específicos e a crescente interdependência global definem a vulnerabilidade. Isso significa que é a combinação de fatores naturais e sociais que definem o desastre, ou, mais precisamente, se são as características físicas do evento que determinam a probabilidade de ocorrência do fenômeno, são as condições sociais de vulnerabilidade que determinam a severidade do impacto. Os desastres são parte do contexto, e se modificam quando algum elemento natural ou social se modifica.

Ao mesmo tempo, observa-se a concepção e a adoção de um elenco bastante significativo de propostas, programas e formas de intervenção voltadas à confrontação do problema. Assim, não deixa de ser paradoxal o fato de que, mesmo durante o Decênio Internacional para Redução de Desastres Naturais - Building a Culture of Prevention, declarado pelas Nações Unidas para o período de 1990-2000, com o objetivo fortalecer as habilidades científicas e tecnológicas de confrontação, a humanidade tenha testemunhado os desastres mais dramáticos e custosos de sua história. Essa ambivalência revela as múltiplas dimensões do processo de construção do risco como, por exemplo, a importância desempenhada pela deterioração ambiental e o aumento da pobreza observado nesse período. Isso demonstra que o agravamento dos problemas dos desastres nas últimas décadas está intimamente relacionado aos processos de desenvolvimento socioeconômico. A crescente materialização dos riscos em desastres, traduzidos em termos do aumento do número de afetados e perdas econômicas, revelam que a dificuldade de atuar sobre os desastres funda-se, na maior parte dos casos, não somente na importância que o tema dos desastres ocupa na agenda de prioridades políticas, econômicas e sociais de cada comunidade, mas, principalmente, nas formas de caracterização e interpretação do fenômeno.

Por isso, apesar da comoção causada pela progressiva cobertura da imprensa da destruição provocada por desastres como os terremotos no Haiti e Chile ou as chuvas em Santa Catarina e Rio de Janeiro, não devemos nos enganar: a situação de emergência não constitui um problema natural, mas um produto da vulnerabilidade da população. Mais precisamente, a disrupção verificada no período pós-impacto (Tempo-2) constitui um produto da falta de cuidado no período pré-impacto (Tempo-1). Não existe, portanto, como faz crer a cobertura da imprensa, uma passagem de condições de "normalidade" pré-impacto para uma condição de "anormalidade" pós-impacto.

Para entendermos adequadamente a ocorrência e impactos dos desastres, devemos aplicar o chamado "princípio de continuidade" 4: considerar a passagem das condições de vulnerabilidade pré-impacto para condições de destruição pós-impacto. Nesse sentido, a chuva ou o tremor de terra simplesmente desencadeia a destruição que se encontra incubada socialmente e que é construída, cotidianamente, pela incapacidade cognitiva da população de conceber adequadamente o problema ou de agir política e tecnicamente na confrontação. Portanto, quando se considera uma enchente, uma enxurrada, um deslizamento ou o efeito combinado desses fenômenos, como ocorre atualmente em várias regiões do Brasil - e o Rio de Janeiro constitui o exemplo mais imediato disso -, a destruição pós-impacto deve ser vista como produto da vulnerabilidade no Tempo 1 que desencadeia a destruição no Tempo 2.

Os desastres podem ser definidos como a disrupção provocada no funcionamento de uma comunidade ou sociedade, podendo ser descritos analiticamente como a função do processo de risco resultante da combinação entre as probabilidades de ocorrência dehazards e as condições de vulnerabilidade da comunidade. Isso significa que "o impacto - o desastre - vai depender das características, probabilidade e intensidade dos hazards, bem como da sustentabilidade dos elementos expostos, baseados nas condições física, social, econômica e ambiental" 5. Assim, do ponto de vista analítico, um desastre (D) pode ser definido como a função do processo social de construção do risco, que resulta do risco de ocorrência de um fenômeno (r) e as condições de vulnerabilidade da comunidade (v), podendo ser expresso da seguinte forma: D = r + v.

Considerando esses fatores, os estudos sobre desastres costumam ser divididos em duas grandes tradições disciplinares: os estudos Hazards, do ponto de vista de geografia, que enfatizam as condições pré-impacto, e os estudos de Disasters, do ponto de vista da sociologia, que enfatizam os fatores pós-impacto 7. O entendimento dos desastres envolve a correlação das dimensões natural e social; porém, como essas dimensões variam de contexto, os desastres convertem-se em fenômenos dinâmicos e com alta variação do potencial de impacto. Ocorre, contudo, que essa multidimensionalidade tem mobilizado um grande número de disciplinas acadêmicas para o estudo dos desastres e, consequentemente, desencadeado um rico debate sobre as formas mais adequadas de definição e intervenção 6. Não existe um consenso entre os especialistas sobre a melhor forma de caracterizar a forma de interação dos fatores natural e social na ocorrência dos desastres, o que indica que a definição dos desastres permanece uma questão aberta.

Como desastre compreende fenômenos multidimensionais, compreender os fatores que têm provocado o aumento da frequência e intensidade dos impactos dos desastres nas últimas décadas pressupõe o estabelecimento de um modelo de análise que relacione tanto os fatores naturais quanto os fatores sociais. Por um lado, constituem o resultado da sobrecarga da capacidade de suporte assimilativa e regenerativa do ambiente natural; por outro, da incapacidade de prever a sua ocorrência, mas também de agir adequadamente. Nesse sentido, pode-se se dizer que os desastres não são somente um problema para o desenvolvimento, mas, sobretudo, um produto do próprio processo de desenvolvimento.

 

Referências bibliográficas

1 United Nations Development Program. Reducing disaster risk: a challenge for development. New York: www.undp.org/bcpr, 2004. 2 Mattedi, Marcos A. As enchentes como tragédias anunciadas: impactos da problemática ambiental nas situações de emergência em Santa Catarina. Campinas: (Tese de Doutorado em Ciências Sociais - UNICAMP), 1999. 3 Tobin, Grahan A; Montz, Burrell E; Natural hazards: explanation and integration. London: The Guilford Press, 1997. 4 Pelanda, Carlo. "Disastro e vulnerabilitá sociosistemaica". Ressegna Italiana di Socioloiga, Roma, n. 22 pp. 432-507, 1982. 5 International Strategy for Disaster Reduction. Living with risk: a global review of disasters reduction iniatives. Genebre: www.unisdr.or, 2005. 6 Alexander, David. "The study of natural disasters, 1977-1997: some reflections on a changing of knowledge". 7 (Mattedi, Butzke, 2001). 8 Mattedi, Marcos A. "O papel da ciência e da tecnologia na confrontação dos desastres naturais: novas respostas para velhas questões". Anais do IIV ESOCITE - Rio de Janeiro, 2008. 15p.

 

 

Marcos Antônio Mattedi é líder do Núcleo de Estudos da Tecnociência na Fundação Universidade Regional de Blumenau