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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.113 Campinas  2009

 

REPORTAGEM

 

Polêmica em torno da mudança ortográfica não ocorre só no Brasil

 

 

Por Maria Carolina Ramos

 

 

Reformas – ou acordos, como preferem alguns – ortográficos não são privilégio brasileiro. Nem as polêmicas que geralmente as acompanham. Os idiomas francês e alemão também já receberam propostas de modificação que foram motivo de discussão e polêmica entre vários grupos, assim como ocorreu e ainda ocorre com as alterações sugeridas para o português (leia reportagem sobre o tema reforma ortográfica nos países de língua portuguesa).

"É natural que esse tipo de reação ocorra", opina José Luiz Fiorin, doutor em linguística e pós-doutor pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (Paris) e pela Universidade de Bucareste. "A França, por exemplo, ensaia uma tímida reforma há quase vinte anos. Mas a população não aceita essa proposta porque a ortografia alcança dimensão simbólica", afirma.

Fiorin aprofunda esse comentário em seu artigo "O acordo ortográfico: uma questão de política linguística". De acordo com o professor, as propostas de reforma ou acordo ortográficos miram a unificação da ortografia, ou seja, da convenção por meio da qual se representam graficamente as formas faladas da língua. "O que se pretende unificar é a escrita e não a língua. Esta última varia de uma região para outra, de um grupo social para outro, de uma situação de comunicação para outra, de uma faixa etária para outra", explica. "A variação é um fenômeno inerente à língua, porque a sociedade em que ela é falada é heterogênea. É impossível uniformizar a língua". Assim, não é difícil prever os possíveis motivos de discordância em torno de propostas de mudança de ortografia.

 

Em outros países

Há pouco mais de três anos – em agosto de 2006 – novas regras para a ortografia alemã passaram a vigorar em escolas e repartições públicas. No entanto, para o redator Klaus Dahmann, da empresa de comunicação Deutsche Welle, a reforma não atingiu a meta de facilitar a escrita através de regras simples, entre elas aquelas que fazem a correspondência entre letras e sons e o uso de maiúsculas. Ele faz essa observação em seu artigo "Caos e anarquia: entra em vigor a nova ortografia alemã", reforçando que, em 1998, quase 600 filólogos e especialistas em literatura publicaram uma carta aberta contra as novas propostas. "Não se pode esquecer que a concorrência entre germanistas é uma das mais acirradas no mundo acadêmico. As trincheiras pró e contra a reforma eram praticamente inevitáveis", afirma o autor. "O assunto em questão envolve profundas emoções ligadas ao idioma materno", continua o autor.

Com o idioma francês, não é diferente. A paixão francesa pela forma escrita de sua língua é tema de livro lançado em setembro deste ano pelo jornalista e escritor François de Closets. Zéro faute: l’orthographe, une passion française (editora Mille et une Nuits) traça a história da ortografia francesa e demonstra como ela tornou-se uma religião de estado real. Tânia Hirata, diretora pedagógica da Aliança Francesa, acredita que o grande apego do povo francês à forma escrita de seu idioma está relacionado ao domínio e precisão do discurso.

Naquele país, a polêmica em torno de mudanças ortográficas recomendadas na década de 1990 ainda existe. A história desse tipo de proposta começou em 1893, quando a Academia Francesa – que, à época, tinha poder de decisão sobre as mudanças ortográficas – analisou a primeira solicitação nesse sentido, que sugeria facilitar a escrita alterando o uso de hiíens e acentos, por exemplo. "Mas, a partir de 1991, o poder político começou a intervir no assunto, aconselhando maior tolerância com aqueles que pecavam no uso do particípio passado, por exemplo", explica Tânia.

O idioma francês utiliza dois verbos – avoir (ter/haver) e être (ser) – como auxiliares em tempos verbais do passado, como o passé composé (passado composto). Esse fator, ao lado de outros, complica o ensino da língua não só para estrangeiros, mas também para os próprios franceses.

Tanto é fato que a sugestão de reforma proposta na década de 1990 partiu dos próprios professores franceses. Esse movimento resultou em um documento, o Rapport de 1990 sur les rectifications orthographiques (relatório de 1990 sobre as retificações ortográficas), validado pelas autoridades linguísticas da Bélgica e do Canadá e aprovado por unanimidade pela Academia Francesa. Essa última reforçou que essas eram apenas recomendações e que as velhas grafias continuariam a ser consideradas corretas, ao lado das novas. No documento, uma das recomendações abole o uso do trait d’union (o hifen, também defenestrado do português nessa última reforma) em algumas palavras e outra propõe a incorporação de elementos de outras línguas, a exemplo de taliatelle (tagliatelle) e paélia (paella).

Há ainda outro aspecto que ajuda a esquentar a polêmica em torno da paixão francesa: enquanto avaliações acadêmicas, como o baccalauréat – que pode ser considerando o equivalente ao vestibular brasileiro ou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) – não dá grande peso à ortografia na nota final da prova, um candidato a emprego que envia seu currículo com escorregões na ortografia é desclassificado imediatamente pelo responsável pela seleção.

"Essas contradições podem ser entendidas porque a língua é viva, dinâmica e evolui. Acho que esse é um debate que nunca terá fim justamente porque esse processo é contínuo", afirma Tânia, cuja observação concorda com a opinião do escritor alemão Johann Gottfried Herder, citado no artigo de Fiorin: cada língua é a expressão viva, orgânica, do espírito do povo.

 

Para saber mais:

- A enciclopédia online e aberta Wikipédia faz um apanhado do panorama de mudanças ortográficas em regiões do mundo, enfocando, principalmente, os casos alemão, francês e neerlandês.