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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.109 Campinas  2009

 

ARTIGO

 

Decifra-me ou devoro-te…

 

 

Li Li Min

 

 

Posso, de súbito, deixar-te paralisado, sem fala ou de boca torta…

 

Muitos ainda não conseguem decifrar os sinais acima como sendo de um AVC em instalação. O reconhecimento precoce, aliado ao rápido atendimento médico qualificado, pode resultar em uma recuperação plena sem sequelas. Infelizmente, as estatísticas apontam para uma realidade sombria em nosso país. O AVC ocupa vergonhosamente a primeira posição de causa de morte no Brasil. Antes de começar a apontar dedos para possíveis culpados, o habitual – o governo –, vamos rever a raiz dessa situação. AVC é um termo genérico que significa uma interrupção de suprimento sanguíneo para alguma região do cérebro. Esta interrupção pode ser decorrente de um entupimento da luz do vaso arterial (que leva o sangue rico em oxigênio) ou de uma ruptura do vaso com extravasamento do sangue para o tecido cerebral ao redor. Esses dois tipos de mecanismos de interrupção do fluxo são classificados em: AVC isquêmico, o mais comum, e AVC hemorrágico. Popularmente, o AVC é conhecido como derrame, coleção de gases ou líquidos em alguma cavidade não habitual, que seria uma descrição do tipo hemorrágico.

Mas, afinal, como que se dá o entupimento da artéria? De forma geral, acontece devido a estreitamento progressivo da luz do vaso por conta de uma inflamação, que leva à conhecida aterosclerose. Essa inflamação pode chegar ao ponto de obstruir o vaso, ou no romper a placa da aterosclerose e soltar um pedaço, que acaba parando em locais onde o calibre do vaso é menor. Quando o coração tem algum problema de funcionamento, bate fora do compasso (arritmia), ou está inchado (dilatação), pode favorecer um turbilhão no sangue e, com isso, formar um coágulo que pode se deslocar e obstruir o vaso à frente. No AVC hemorrágico, o mecanismo de ruptura está relacionado a um aumento da pressão na artéria e/ou uma má-formação do vaso seja do tipo má-formação arterio-venosa ou aneurisma (dilatação do vaso arterial). Assim, identificamos alguns pontos que apontam para a raiz do AVC: estreitamento da artéria, embolia, pressão alta e vasos defeituosos.

De fato, a ciência avançou muito e esmiuçou os meandros de cada um desses pontos e a conclusão é a seguinte: AVC é uma síndrome de causa multifatorial. Síndrome, porque se trata de um conjunto sinais e sintomas, em comum, de uma gama ampla de mecanismos de lesões distintos. Exemplo: paciente com hemiparesia (metade do corpo com fraqueza muscular) súbita do lado esquerdo, com a tomografia computadorizada de crânio mostrando uma área de infarto cerebral. Pode ser uma descrição genérica de um AVC isquêmico, por conta de uma embolia de um coágulo do coração, ou de um fragmento decorrente de uma ruptura da artéria carótida. Se não tivéssemos a informação da neuroimagem, não seríamos capazes de distinguir o AVC isquêmico do hemorrágico, que compartilham os mesmos sinais e sintomas. Causa multifatorial porque o evento vascular é resultante de uma matemática combinatória de variáveis modificáveis e não modificáveis. Em alguns, o AVC, de fato, é um acidente sob a luz do conhecimento atual, entretanto, conforme a presença de determinados fatores de risco, você está em perspectiva maior ou menor de uma colisão eminente.

E você sabe quais são esses fatores de risco? Vamos ao jogo dos sete erros: pressão alta, diabetes, fumo, colesterol alto, obesidade, sedentarismo. Você identifica algum em você ou em alguém conhecido? Agora, você ficaria surpreso que alguém que perdeu a barriga para fora das calças, torcedor fanático (não é fator de risco), come só fast-food, fuma, não pratica atividade física, tem pressão alta, subitamente apresenta AVC? O termo acidente, nesses casos, já nem é adequado. Não tem nada de acidente…

E qual é o sétimo erro dessa lista acima de seis? Sim, só tem seis escritos acima, você prestou atenção e detectou um erro… Alguns devem estar celebrando, ufa… "passa o cinzeiro e controle remoto. Enfim, isso não é nada. Estou bem, bem demais". Este é o sétimo erro, a negação. Isso não vai acontecer comigo… As dimensões desta variável, a negação, são complexas.

Mais um teste. Você compra um carro novo, está dirigindo e no decorrer do seu caminho, a luz de alerta do motor acende. Você pára ou segue em frente? Se você optou por parar, parabéns, você deu atenção para o sétimo sinal de alerta. A boa notícia é que todos estes seis sinais de alerta podem ser modificados e, as possibilidades de atuação nesses fatores de risco, são inúmeras.

Mas… Você seguiu adiante, a despeito de todos os alertas piscando. E, um dia…, como hoje, por exemplo, a somatória de anos da negligência dos fatores de risco resulta na súbita perda da força de um lado do corpo, boca torta, problemas para falar, dor de cabeça, tontura, e/ou obscurecimento da vista. O que está acontecendo? Se você souber que se trata de uma AVC em curso, e se chegar em um lugar com atendimento especializado rapidamente, pode minimizar o estrago. Esse estrago, significa, no caso de você sobreviver, uma vida com sérias limitações que vão desde incapacidade para falar até se vestir, se lavar, se cuidar.

Ok, você resolveu a primeira charada. A segunda: e agora o que devo fazer? A resposta correta é chamar o serviço de atendimento móvel de urgência. Acreditem, existem pessoas que discam o número de urgência dos Estados Unidos. No Brasil, o número correto é 192. Para lembrar: Samu-192, Samu-192, Samu-192, Samu-192, Samu-192. Gravou? Esta atitude é importante, pois o Samu-192 pode, prontamente, acionar serviços especializados no atendimento ao paciente com AVC, preparando a equipe para receber o paciente. Isso reduz o tempo gasto, que vai desde tempo gasto para saber onde levar o paciente, o tempo gasto para ser atendido no hospital e triado para atendimento especializado. Tempo nessa hora é cérebro! Então não perca tempo. Quanto mais o tempo passa, maior vai ficando a lesão cerebral. Inclusive, já existem centros no Brasil altamente especializados que estão preparados para usar medicações (trombolítico rt-PA) e intervenções endovasculares que conseguem desobstruir a artéria entupida ou então usar o tratamento neurocirúrgico ou endovascular no tratamento de sangramento cerebral devido a má-formações vasculares. Entretanto, para isso, o paciente precisa chegar no hospital especializado com no máximo de três horas depois da instalação dos primeiros sintomas do AVC. Os acidentes sociais (inequidade) e geográficos (locais de difícil acesso) no Brasil são outros buracos no percurso da vida que o brasileiro precisa enfrentar – infelizmente o AVC não marca hora nem local para acontecer. Nas próximas horas e dias, o cuidado intensivo especializado fará diferença na sobrevivência, a sobrecarga emocional na família é grande, pois é a luta pela vida, os valores, crenças e sentimentos que se misturam e as decisões são muito difíceis de serem tomadas, em particular nos casos de terminalidade da vida.

O desfecho da história de AVC nem sempre termina com final feliz e, mesmo para aqueles que tenham sobrevivido ao evento, a grande maioria terá sequelas motoras e cognitivas. A reabilitação é uma tentativa de recuperar as funções perdidas e tem se mostrado de fundamental importância prática para esses pacientes. As possibilidades na reabilitação são inúmeras e, hoje, com divisões de atuação profissional, muito claras. Além disso, há uma necessidade de se reinventar, pois as limitações estão presentes e, agora, as atitudes e prioridades são outras. Este, talvez, seja um dos grandes desafios que o sobrevivente do AVC precisa enfrentar, a reinvenção do seu eu para uma vida plena. Esta reinvenção, muitas vezes, esbarra na ausência, ou pior, no não acesso a suporte no sentido amplo (médico, social, psicológico, espiritual) e na infraestrutura física adaptada. Quem teve um AVC, que comprometeu a mão, sabe quão difícil ficam algumas tarefas "triviais", como segurar uma colher, escovar os dentes, abotoar a camisa. Essa sobrecarga, que é imposta pela nova situação, não restringe apenas o paciente, envolve familiares, os cuidadores informais, que da noite para o dia são dragados por esse redemoinho.

"E a moral desta história?" – como perguntaria o meu filho de oito anos. AVC é uma catástrofe que pode ser prevenida e tratada. É preciso adotar medidas de guerra contra o AVC e, até esse momento, podemos dizer que ainda estamos perdendo e muito ainda precisa ser feito. Ahn, e mais – Samu-192, Samu-192, Samu-192.

 

Aquele que conhece o inimigo e a si mesmo, lutará cem batalhas sem perigo de derrota; para aquele que não conhece o inimigo, mas conhece a si mesmo, as chances para a vitória ou para a derrota serão iguais; aquele que não conhece nem o inimigo e nem a si próprio, será derrotado em todas as  batalhas. 

Sun Tzu

 

 

 

Essa análise de estratégia, descrita por Sun Tzu, no livro Arte da guerra, vai ao ponto. Esta edição da revista ComCiência, dedicada ao tema AVC, abordado em diversos ângulos, expõe partes deste acidente anunciado. Conhecendo melhor as várias faces do AVC, podemos ajudá-lo a prevenir e enfrentar a catástrofe de maneira mais adequada. Esta informação precisa ser absorvida e incorporada na psique. Hoje, vivemos o problema da obesidade infantil, fruto de uma inadequação alimentar. Precisamos de vidente para antever o futuro nesses casos?

O ônus social do AVC em nossa sociedade é alto, há uma necessidade de um engajamento amplo de todos para vencermos essa guerra. Você, como cidadão, está convocado. Nessa guerra, precisamos sair da postura niilista, a vida é cara e a preservação, nesse caso, depende muito de você, da sua atitude. Nessa marcha, rumo à vitória, o primeiro passo só pode ser dado por você!

 

 

Li Li Min é médico, professor associado e coordenador do Programa de Neurovascular do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Presidente fundador e voluntário da Aspe (www.aspebrasil.org), executora da Campanha Global Epilepsia Fora das Sombras da OMS/ILAE/IBE no Brasil. Coordenador de difusão do Programa CInAPCe (www.cinapce.org.br). E-mail: limin@fcm.unicamp.br, li@aspebrasil.org, li@cinapce.org.br