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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.109 Campinas  2009

 

REPORTAGEM

 

De pai para filho: fatores genéticos e ambientais podem desencadear a doença

 

 

Danielle Lucon; Fábio Mury

 

 

Deitada no quarto, Maria levantou-se e presenciou seu marido, Antônio, se queixando de fortes dores de cabeça e falando com dificuldade. Maria vestiu-se rapidamente, chamou os três filhos, Pedro, de 24 anos, Fabiana, de 23 e João, de 19. Em cinco minutos, a família já estava no setor de emergência de um hospital universitário. Maria sabia que se tratava de um quadro de acidente vascular cerebral (AVC), já presenciado em 2004 com seu filho, João, na época com 14 anos.

O passado veio à tona para lhe ensinar que o tempo poderia estar a seu favor dessa vez. Ela sabia que cada segundo era precioso e que poderia salvar seu marido e fazer o que não pôde ser feito pelo seu filho, pois a demora para levar João ao hospital deixou sequelas, como o comprometimento no uso da linguagem, tanto no que diz respeito à expressão quanto à compreensão. Tanto Antônio quanto João eram hipertensos e apresentavam má formação cardíaca. Porém, enquanto o filho era jovem e praticava exercícios físicos, o pai tinha uma rotina sedentária.

Maria foi informada pelo médico sobre os fatores de risco ambientais que, juntamente com o fator hereditário, poderiam aumentar o risco de AVC em seus outros filhos. Essa mulher sentiu dor e sofrimento ao ver, primeiro, seu filho, e depois, o marido diante de um quadro de AVC. Porém, com amor e muita disciplina, incorporou medidas de prevenção no cardápio da sua família, reduzindo drasticamente a quantidade de sal e gordura em seus pratos. Tal atitude contribui para diminuir o risco da ocorrência do AVC e de outras doenças em sua família. Os nomes apresentados acima são fictícios, porém a situação é real.

De modo geral, os fatores de risco para a maioria dos casos de AVC são bem estabelecidos e podem ser classificados como modificáveis (hipertensão arterial, diabetes, doenças cardíacas, tabagismo, obesidade, alcoolismo, vida sedentária) e não modificáveis (etnia, sexo, idade).

É comum associar ao AVC pessoas com mais de 60 anos de idade que têm os fatores de risco modificáveis, e a ocorrência da doença também é maior em homens do que em mulheres e afeta mais os negros do que os brancos. A maior prevalência de AVC entre os negros pode ser atribuída ao fato de eles possuírem uma maior predisposição a desenvolver hipertensão arterial, uma característica genética da própria etnia. "Não é raro encontrarmos indivíduos vitimados por AVC nos quais não encontramos nenhum desses fatores. E, em alguns casos, observamos a recorrência da doença em diversos membros da mesma família", ressalta Marcondes França Jr, neurogeneticista do Departamento de Neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Em busca de afirmativas que mostrem a genética como responsável pelo desencadeamento de algumas doenças, a completa publicação do sequenciamento do genoma humano, em 2005, mapeou as informações contidas no nosso material genético e contribuiu para um melhor conhecimento das bases genéticas que compõem o ser humano. Esse grande volume de dados sobre a composição do ser humano fez surgir uma nova fase na ciência: a medicina genômica, que promete utilizar toda essa informação para prevenir, diagnosticar e tratar diversas doenças. Assim, a humanidade progrediu de um período em que se estudavam patologias de herança simples (ou mendeliana), que são desencadeadas por um único gene, para outra fase, do estudo das doenças multifatoriais, caracterizadas pela soma de interações entre vários genes e o meio ambiente (fenótipo), entre elas esquizofrenia, hipertensão, diabetes tipo 2, obesidade e as doenças cérebro vasculares (DCV), como o AVC.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), as doenças cerebrovasculares são uma das principais causas de morte no mundo. Aproximadamente 15 milhões de pessoas no planeta são acometidas a cada ano por DCVs, das quais 5,5 milhões morrem e outras 5 milhões ficam incapacitadas pelo resto da vida. No Brasil, 130 mil pessoas morrem a cada ano, ou seja, entre 101 e 125 pessoas para cada 100 mil habitantes. Um dado curioso é que, pela primeira vez, as taxas de incidência de DCVs em países de baixa e média renda superam em 20% o número de casos registrados em nações desenvolvidas (leia, nesta edição, artigo sobre epidemiologia da doença).

As DCVs são basicamente divididas em dois tipos: os isquêmicos (DCVi) e os hemorrágicos (DCVh). Segundo um artigo publicado em 2003 na Nature Genetics, por Anna Dominiczak e Martin McBride, da Divisão de Ciências Médicas e Cardiovasculares da Universidade de Glasgow, na Escócia, a porcentagem de ocorrência das DCVis é de 80 a 90%, enquanto as DCVhs representam de 10 a 20% do total de eventos de DCVs.

Embora haja algumas doenças de herança simples associadas às DCVs – como cadasil, angiopatia amilóide cerebral familiar, doença de Fabry, entre outras –, a maior parte dos casos é multifatorial, para os quais os clássicos padrões mendelianos – da genética de Mendel – não podem ser demonstrados. Isso porque, nesses casos, temos mais de um gene implicado na manifestação clínica do quadro patológico, além da modulação dos fatores ambientais sobre a atividade desses genes.

Até pouco tempo atrás, as causas eram exclusivamente atribuídas aos hábitos de vida (sedentarismo, fumo, dieta etc), e a hipertensão, o tabagismo e o diabetes tipo 2 eram identificados como os principais fatores de risco para DCVs. Porém, aproximadamente 69% do risco de desenvolvimento dessas doenças não pode ser atribuído a esses três fatores individualmente.

Estudos recentes baseados em análises comparativas entre gêmeos monozigóticos ou idênticos – que possuem o mesmo material genético – e gêmeos dizigóticos ou fraternos – que não compartilham o mesmo material genético entre si –, acompanhados por um longo período de tempo, permitiram identificar que as DCVs apresentam uma concordância de cinco a seis vezes maiores entre os gêmeos idênticos, o que justifica o papel da herança genética na ocorrência das DCVs.

Outras estratégias são os estudos de genética populacional e molecular, tais como os de ligação (linkage) e de associação, os quais buscam genes candidatos para as DCvs. Tais pesquisas têm demonstrado maior prevalência em indivíduos com histórico familiar da doença. "A investigação de genes candidatos constitui na identificação de variantes genéticas funcionalmente relevantes, mesmo com efeitos modestos, estabelecendo sua função no risco do AVC através de estudos de caso-controle ou de coorte. Constitui, portanto, importante estratégia, para investigação de doenças poligênicas", diz Alessandra Carvalho Goulart, do Centro de Pesquisas do Hospital Universitário (HU) da USP.

Estudos que rastreiam o genoma humano ganharam bastante popularidade nos últimos anos, pois possibilitaram a investigação de genes mais comuns e com maior efeito no risco de doença. Porém, recentes pesquisas publicadas por Mar Matarin, na revista Lancet Neurology, e por Matin Larson, na BMC Medical Genetics, ambas em 2007, não encontraram nenhum gene associado ao risco significativo de AVC isquêmico. Dessa forma, até o momento, não há estudos que apontam o envolvimento de genes específicos responsáveis pelo aumento do risco de AVC.

Paralelamente, alguns estudos contrariam a hipótese de que fatores genéticos sejam responsáveis pelas DCVs e afirmam que fatores ambientais como tabagismo, dieta e estresse são os principais desencadeadores. "A s variações de mortalidade e incidência são relativamente rápidas na maioria das populações. O componente ambiental é maior do que o genético", avalia Paulo Andrade Lotufo, neurologista e superintendente do HU/USP.

Contudo, ainda não é possível inferir de forma precisa qual a porcentagem de participação dos fatores genéticos e ambientais na etiologia (ou seja, nas causas) das DCVs. No entanto, recentes estudos têm demonstrado que os fatores genéticos podem predispor indivíduos mais susceptíveis à ação de fatores de risco convencionais, modulando seus efeitos ou interferindo diretamente no risco de AVC. Por isso, sabendo que alguém na família já teve AVC, como no caso relatado no início deste texto, aumenta o alerta quando surgem sintomas semelhantes.

 

 

Para saber mais:

- A genome-wide genotyping study in patients with ischaemic stroke: initial analysis and data release

- Framingham Heart Study 100K project: genome-wide associations for cardiovascular disease outcomes

- Genetics of common polygenic stroke

- International Consortium of Stroke