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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.107 Campinas  2009

 

EDITORIAL

 

A longa marcha para a imobilidade

 

 

Carlos Vogt

 

 

Não se ouvia nenhum rumor de passos nas alamedas. A meia altura de uma
árvore indeterminada, um pássaro invisível empenhava-se em que fosse
breve o dia, explorando com uma nota prolongada a solidão circundante mas
recebia desta uma réplica tão unânime que dir-se-ia que ele acabava de parar
para sempre o instante que procurava fazer passar mais depressa.
(Marcel Proust – Em busca do tempo perdido, v. I – No caminho de Swann)

 

 

 

 

 

Peter Gay em seu livro Modernism1 escreve que a locomotiva foi considerada, com razão, segundo ele, como fundadora de um novo mundo dominado pela mecanização, acelerando as comunicações com os melhoramentos revolucionários nos correios, nas estradas e demais vias de transportação.

Desse modo, entre as várias características que podem ser atribuídas ao Modernismo, cujas raízes devem ser buscadas no século XIX e no processo de industrialização intenso que consolidou socialmente a burguesia como classe dominante, está, sem dúvida, a da paixão pela velocidade, pelo movimento rápido, pela rapidez da mobilidade.

É interessante notar que, nessa perspectiva, o trem e a locomotiva estão para o mundo moderno, também enquanto símbolos, como as caravelas estão para o mundo dos descobrimentos e da Renascença.

A verdade, que Darwin ajudou a contar de forma definitiva, ao menos até agora, é que o homem nasceu inquieto ou inquietou-se depois do nascimento, tanto do indivíduo, quanto da espécie, neste último caso, desde a mãe África, onde ele surgiu, por diversificações da linhagem do chimpanzé, há cerca de cinco a sete milhões de anos atrás.

De lá para cá deu-se uma grande variedade de ocorrências no seu processo evolutivo, desde o Sahelantropus tchadensis, supostamente o hominídeo mais antigo, até o homo sapiens que, já ereto desde 100 mil anos passados, colonizou todos os continentes, tendo começado a sua imensa peregrinação na Terra há mais de 200 mil anos, quando era ainda Neandertal e por ela se espalhou, então sapiens sapiens, chegando às Américas há cerca de 15 mil anos, com controvérsias entre seus descentes antropólogos e palentólogos quanto às datas de sua chegada cá também no continente mais ao sul.

O fato é que o indivíduo viajou e a espécie também, movimentando-se, por ondas migratórias, uma ou três, três ou mais, por terra e por mar, ao que supõem as hipóteses também em disputa para explicar a origem do homem na América.

Se nascemos sabendo ou se adquirimos a sabedoria do pensamento simbólico depois, por alguma mutação genética, ainda não sabemos, mas temos fé e esperança de que viremos a saber. O que já sabemos, entre tudo o que é sabido, é que o homem continuou a andar, a circular, a voar, a girar, a viajar também pelo ar, a se movimentar: para um lado e para o outro, para cima e para baixo, para o fundo e para o raso, para a superfície e o profundo, para si próprio e para o outro, para deus e para o diabo, para a penitência e o pecado, para a solidão e o convívio, para a cidade e o campo, para a produção e o consumo, para o trabalho e o ócio, para o amor e o ódio, para o não e para o sim, para o talvez sim e talvez não, para o real e sua ilusão.

Movimento, pois, e repouso, como categorias do ser movente e da movimentação do ser mutante. Se a locomotiva é um ícone do Modernismo e a caravela um símbolo do Renascimento, tudo que é pós-industrial e pós-moderno pode ser simbolizado no computador como ícone das tecnologias de informação e comunicação ─ as TICs ─ que aceleraram a velocidade do homem no espaço e no tempo, dotando-o da simultaneidade das imagens e dos simulacros que alboroam os vazios de suas distâncias e o peso de suas aproximações.

O viajante chegou ao porto movimentado de sua imobilidade de onde navega sem sair do lugar e onde se planta deslocando célere e obsessivamente o eixo de sua concentração.

A seleção natural como princípio e processo explicativo da transformação das espécies incorpora o conhecimento e a capacidade que tem o homem de ação e interferência sobre o meio ambiente como um dado do processo seletivo das formas de vida ─ o homem inclusive ─ que, aturdidas, oscilam entre as forças da natureza e a dominação científica e tecnológica que a cultura do conhecimento permite estabelecer, não propriamente sobre elas, mas com elas, em contratos de utilidade social e econômica.

o ponto dessa máxima imobilidade, o mundo se movimenta e o homem evolui também incorporando, na mudança, comportamentos e ações que sua inteligência imprimiu nas máquinas que simulam sua capacidade simbólica e lhe devolvem influências que certamente marcarão os caminhos de suas transformações futuras. Nelas, já se sabe, o presente tenderá a se alongar, não como passado histórico, mas como imagem congelada de simultaneidades espalhadas na superfície do tempo colado ao espaço dessa imobilidade vertiginosa.

 

 

1 GAY, Peter. Modernism. Nova Iorque/Londres: W.W. Norton & Company, Inc., 2008. p. 22.