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ComCiência

versão On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.99 Campinas  2008

 

ENTREVISTA

 

Marilena Lazzarini

 

 

Caroline Borja

 

 

Coordenadora-executiva do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), a engenheira agrônoma, que tem sido há mais de 20 anos uma protagonista vitoriosa na luta pelos interesses coletivos dos consumidores brasileiros, se tornou referência internacional e hoje preside a Consumers International, uma das mais importantes entidades de defesa do consumidor.

Ainda nos tempos da ditadura, Marilena Lazzarini presidia o Procon-SP. Mas já a incomodava o fato de que resolver reclamações individuais é como enxugar gelo. Foi o ideal de defender interesses coletivos que a levou a fundar, em 1987, dois anos após o fim do regime militar, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec). A independência política e econômica da organização não governamental permitia ao Idec um único interesse: o de representar coletivamente o consumidor. Na presidência do Idec, Marilena venceu inúmeras batalhas, hoje anunciadas no site institucional da organização, como uma bandeira do mérito que faz lembrar todos os dias de que lutar vale a pena. E são essas vitórias que motivam a engenheira agrônoma a seguir na batalha por uma avaliação adequada dos riscos dos transgênicos, que, ignorando as irregularidades apontadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – mas com o aval do governo brasileiro –, invadiram o mercado. E, na figura de Marilena, essa luta transcende os limites do território nacional. Hoje, mesmo no papel de coordenadora-executiva do Idec, Marilena, que se tornou referência internacional, preside a Consumers International, que congrega mais de 250 organizações de consumidores de todo o mundo.

ComCiência – Quais foram as principais conquistas e problemas enfrentados pelo Idec nesses 20 anos de existência, atuando como defensor dos interesses do consumidor?

Marilena Lazzarini – São incontáveis. No ano passado, quando o Idec completou 20 anos, nós fizemos um livro com essas conquistas e ele está no site do Idec para download. Mas tivemos uma vitória que é emblemática: a melhoria dos preservativos masculinos. Há uns 17 anos, no Brasil, o padrão de qualidade exigido pelas normas técnicas era muito baixo e isso com a aids se espalhando. Nós insistimos, fizemos testes, trabalhamos muito para melhorar os regulamentos técnicos e efetivamente esse trabalho resultou numa melhoria de qualidade. Há também um trabalho que nós temos na educação formal. É um guia de consumo sustentável para professores, com o conteúdo mais relevante para a realidade brasileira, e sobre como o professor pode levar isso para a sala de aula, voltado para alunos de quintas a oitavas séries do ensino fundamental. E esse material foi adotado pelo Ministério da Educação, a quem nós já cedemos os direitos autorais, e que capacitou 30 mil professores. Outra vitória foi no caso dos alimentos transgênicos. Continuamos nessa luta e o Idec tem dado uma contribuição muito importante.

ComCiência – A introdução dos transgênicos na cadeia alimentar gerou um polêmico debate social e científico a respeito dos riscos agregados e da necessidade de fornecer informações ao consumidor. Qual é a posição do Idec diante do plantio e comercialização de transgênicos no Brasil?

Marilena Lazzarini – O Idec tem a mesma posição que tinha em 1998, porque a decisão para liberar a soja transgênica, o primeiro movimento da CTNBio, foi em 1998. Mas aí a liberação foi interrompida, foi suspensa por uma ação na justiça que o Idec apresentou. E desde aquela época entendemos que a autorização para comercialização desses alimentos requereria um protocolo de avaliação ou regulamento técnico emitido pela Anvisa, que deveria estabelecer uma avaliação de riscos à saúde, e isso até hoje não aconteceu. A soja acabou sendo liberada para comercialização sem esse protocolo e também sem uma avaliação de riscos para o meio ambiente, uma avaliação do impacto ambiental. E há ainda um terceiro ponto: o da informação para o consumidor. Havendo avaliação de riscos à saúde e do impacto ambiental, é importante, também, o consumidor ter a informação no rótulo, dizendo se aquele produto é transgênico ou não, para que ele tenha o direito de escolher. Esse foi o único ponto em que nós conseguimos a vitória: a obrigatoriedade da informação no rótulo, por meio de um decreto federal. O governo acabou de liberar milho geneticamente modificado sem avaliar riscos para a saúde e para o meio ambiente. E ainda pior. A Anvisa e o Ibama fizeram manifestações contundentes contra essa liberação e, mesmo assim, o Conselho de ministros aprovou a liberação. Foi uma aprovação de caráter político porque, no âmbito da avaliação técnico-científica, os órgãos envolvidos e tecnicamente responsáveis por essa questão opinaram contra. Essa é uma situação grave. Inclusive, o Idec recentemente entrou com uma reclamação, junto com outras organizações não-governamentais, ao Comitê de Cumprimento do Protocolo de Cartagena da Organização das Nações Unidas (ONU), na Alemanha, contra o governo brasileiro por esse motivo. No site do Idec, estão os relatórios da Anvisa e o do Ibama. Eu gostaria de convidar a todos que tiverem a oportunidade para entrar no site do Idec, para que tenham a devida noção da importância desses documentos e a percepção de que a liberação dos transgênicos foi uma decisão política.

ComCiência – Levando em conta que a avaliação quanto à segurança do produto geneticamente modificado deveria preceder sua introdução no mercado, que postura o consumidor deveria assumir nesse debate?

Marilena Lazzarini – Hoje, o rótulo deve informar que o produto é geneticamente modificado, então o consumidor deve prestar atenção no rótulo. Eu não compro produto que tem ingrediente geneticamente modificado, porque eu sei que esses produtos não contaram com uma adequada avaliação. O governo e as empresas dizem que esses produtos não oferecem risco à saúde, mas isso não está demonstrado. Essa comprovação científica não existe. Não estou afirmando que eles tenham; ninguém sabe, porque isso não foi avaliado. E são alimentos que, como eles são, não existem na natureza. Com aquilo que a natureza fez, o homem já aprendeu a se relacionar, então nós sabemos o que faz mal. Agora, com esses novos alimentos, se eventualmente surgirem problemas daqui há alguns anos, como não houve investigação científica, nós vamos ter que lidar com coisas novas. Então, acho que é mais seguro não consumir.

ComCiência – As pesquisas em biotecnologia geraram produtos os mais diversos que invadiram o mercado nos últimos anos e estão se tornando cada vez mais acessíveis e banais. Como a senhora avalia o impacto dessas novas tecnologias nas relações de consumo? Que novas questões as biotecnologias trazem para os consumidores?

Marilena Lazzarini – Depende muito do tipo de produto. Quando se fala de um medicamento, ele é muito bem avaliado. Os protocolos de avaliação de medicamentos são bem mais rigorosos do que os dos alimentos. E os medicamentos são direcionados para uma situação em que a pessoa tem um problema e vão ter que passar por uma avaliação de risco e benefício. Você vai passar pelo risco para conseguir o benefício, você está apostando no benefício. Aí pode valer a pena uma nova tecnologia que venha da biotecnologia ou de qualquer outra técnica. O problema é o que está sendo feito na área de alimentos transgênicos, em que não há avaliação desses produtos, sendo que as pessoas ingerem alimentos todos os dias em quantidades grandes. A adoção dos alimentos transgênicos é uma questão que envolve mudança de paradigma alimentar. Estão trazendo coisas novas para bilhões de pessoas consumirem em quantidades grandes.

ComCiência – Pelo fato desses produtos terem o aval e legitimidade da ciência o impacto é distinto do que acontece com outros produtos?

Marilena Lazzarini – Eles não têm o aval da ciência. Existe uma controvérsia. Há cientistas, principalmente aqueles que trabalham com a biotecnologia, que muitas vezes são financiados pela indústria – porque a biotecnologia, em grande parte, é desenvolvida não por instituições independentes de pesquisa e sim por empresas que têm interesse econômico – que defende os transgênicos. E há cientistas muito críticos. Então, em primeiro lugar, não há unanimidade. O que essas empresas conseguiram foi - com um bom trabalho de relações públicas, na mídia e, lógico, como grandes anunciantes que são – manipular a opinião pública. As matérias que saem, em geral, são favoráveis, mas essa não é a realidade.

ComCiência – Como tem sido o trabalho feito pelo Idec para sensibilizar o consumidor de modo que ele se conscientize de que pode contribuir com o desenvolvimento sustentável também na hora de adquirir um produto?

Marilena Lazzarini – Nós temos trabalhado em várias frentes do consumo sustentável. A mais relevante é o "Manual de Educação para o Consumo Sustentável". Além disso, o Idec tem feito pesquisas e divulgado bastante essa questão do consumo sustentável na nossa revista, procurando abordar essa questão em termos práticos. Não adianta falar de consumo sustentável sem levar para a prática. Esse material, é voltado para a discussão prática e também para a modificação de normas. Por exemplo: as resoluções que regulam o descarte de produtos que podem ser perigosos para a saúde, como pilhas e baterias, que acabam indo para os lixões. Nós temos defendido mudanças nessas normas, para que o fabricante seja responsável por esse material. Isso não acontece no Brasil, mas na Europa é obrigatório por uma diretiva européia. Consumo sustentável e educação são áreas em que o Idec quer trabalhar mais. Parte do nosso papel tem sido produzir materiais. Hoje vejo muitas organizações, como o Procon, usando nossos materiais, e isso vai se multiplicando. Temos também o material "Mude o consumo para não mudar o clima", feito em parceria com uma outra organização, a Vitae Civilis, e voltado para a questão das mudanças climáticas. Temos o cartão virtual, em que nós convidamos as pessoas a enviarem para o seu supermercado. A chamada é: "Como saber se o seu bife provoca desmatamento?". A idéia é levar os supermercados a cobrarem mais informação dos distribuidores de carne, para garantir que essa carne não seja procedente de áreas onde está havendo desmatamento. Nesse tipo de material, a nossa proposta é sempre explorar a questão das mudanças climáticas relacionando com os padrões de consumo.

ComCiência – O Idec foi fundado em 1987. Naquele ano, ainda não havia Código de Defesa do Consumidor e nem mesmo a Constituição Federal de 1988. Como foi fundar o Idec naquelas circunstâncias, em que a abertura política era um processo incipiente?

Marilena Lazzarini – O Idec nasceu da minha experiencia no Procon-SP, que dirigi de 1983 a 1986. Era um momento importante para o país, momento de retomada da democracia, então já havia essa luta por direitos, movimentos importantes, mas não se tinha instrumentos para trabalhar. E mesmo assim muitas iniciativas foram bem sucedidas com a ajuda da imprensa. Então, o Idec, para mim, foi uma continuação da experiência que eu estava vivendo no Procon. Mas, colocamos no Idec a perspectiva de uma atuação mais coletiva do que individual, porque no Procon o foco era bem grande na solução de reclamações e o Idec começou com um foco mais coletivo.

ComCiência – Qual é o papel do Idec hoje? Como ele se insere no atual contexto político e social?

Marilena Lazzarini – O Idec hoje é uma organização que tem reconhecimento público para representar os interesses do consumidor, nessa perspectiva coletiva. Penso que o principal papel do Idec hoje é esse, o de intervir, levando um posicionamento voltado para a defesa dos interesses do consumidor em diferentes políticas públicas, na área de alimentos, telecomunicações, serviços financeiros, entre outros. Porque não adianta resolver o problema, ou tentar resolver o problema, do consumidor individual, lá na ponta do consumo, na relação de consumo, se não houver um acompanhamento, monitoramento e também uma incidência para garantir que as políticas públicas levem em conta esses interesses. Resolver apenas reclamações é como enxugar gelo. Por isso, hoje o Idec faz um esforço grande para atuar nessa perspectiva das políticas públicas.

ComCiência – A demora no atendimento, tanto por parte do Procon quanto pela justiça, desestimula o consumidor que se sente lesado, o qual, muitas vezes, acaba desistindo de procurar seus direitos. O que a senhora aconselha nesses casos?

Marilena Lazzarini – No site do Idec, o associado tem uma área reservada em que ele tem informações sobre praticamente todos os problemas de consumo. Nós temos um banco de dados sobre os direitos do consumidor e como ele deve proceder para fazer valer os seus direitos. O primeiro passo que ele tem que dar é buscar a solução do problema com a empresa diretamente, não ir para a Justiça e não, necessariamente, ir para o Procon. O consumidor, sabendo quais são os seus direitos, na maior parte das vezes, consegue resolver o problema já com a empresa. Saber os direitos é fundamental para saber reclamar, porque o consumidor que mostra para a empresa que conhece seus direitos, e que sabe reivindicá-los, geralmente tem sucesso. O Procon é uma segunda alternativa e também os juizados cíveis. E muitas vezes o consumidor consegue resultados na justiça, a chance é grande. E a maior parte desse problema é de âmbito coletivo. Mas o consumidor vê essa questão por uma perspectiva individual. Nós não temos ainda no Brasil uma cultura de as pessoas se associarem às organizações de consumidores. E de contribuir, porque uma organização de consumidores precisa de associados para se sustentar porque não pode receber dinheiro de empresas. O Idec não pode ter nenhuma fonte que comprometa a sua independência. Então, há grandes questões, as mais importantes, que são de interesse coletivo porque elas passam pela definição de políticas públicas, por um regulamento mal feito, o que pode prejudicar todos os dias o consumidor. E mesmo que ele vá reclamar no Procon, existe um regulamento que é contra o consumidor. E quem é que faz esse regulamento? Lá no governo, na comissão, no comitê, no Congresso Nacional, são as organizações de defesa do consumidor que vão representar e defender esse interesse, com apoio técnico e advogado, porque o consumidor individualmente não faz isso. A organização é como um sindicato que defende os interesses dos trabalhadores.

ComCiência – O Idec chegou a organizar, em 2003, protestos na forma de boicotes populares, como o chamado "caladão", contra o reajuste da conta telefônica, em que os consumidores deixariam seus telefones fora do gancho por algumas horas, e também o "boicote pela paz", em que os consumidores brasileiros evitariam produtos de origem norte-americana em represália à intervenção militar dos EUA no Iraque sem o aval da ONU (Organização das Nações Unidas). Qual é a sua avaliação a respeito desse tipo de protesto? A senhora acha que eles deveriam ser adotados com maior freqüência e de forma mais disseminada?

Marilena Lazzarini – Campanha de boicote é algo que precisa ser bem planejado para não desgastar essa força. Acho que a maior força do consumidor é essa, deixar de comprar, de forma coletiva, determinados produtos. Nós temos vontade de fazer mais dessas campanhas. O boicote tem que ser amplo para realmente provocar uma mudança. Tem que ter uma questão que envolva o interesse de uma parcela grande da população e é uma estratégia muito importante. Eu imagino que vamos ter muitos ainda nessa questão do consumo sustentável, porque há uma tendência de que as organizações de consumidores acompanhem a conduta de determinadas empresas.

ComCiência – Desde março, na hora de oferecer parcelamentos que envolvam cobranças de juros, as empresas têm que informar ao consumidor o Custo Efetivo Total (CET), composto por juros e outras taxas, como Imposto sobre Operaçõs Financeiras (IOF) e Taxa de Abertura de Crédito (TAC). Dessa forma, o consumidor saberá exatamente quanto vai pagar pelo parcelamento. Antes disso, as empresas em geral mostravam somente os juros, omitindo as outras taxas embutidas. Avalia-se que, com o CET, será mais fácil comparar cada forma de pagamento e escolher a mais vantajosa. Qual é o impacto desse tipo de transparência nas relações de consumo?

Marilena Lazzarini – O CET nada mais permite do que o Código de Defesa do Consumidor já obrigava. Ele já estava disposto no Código. Hoje, essa questão é muito importante porque, no Brasil, a quantidade de pessoas que ascendeu ao mercado de consumo de uma forma mais ampla é de 20 milhões de pessoas. São pessoas que estão recebendo cartão de crédito, que estão começando a comprar muitas coisas que elas não compravam, uma série de produtos, e compram mal. Se por um lado elas tiveram uma melhoria na renda, por outro lado, por falta de informação, eles são vulneráveis. Todo consumidor é vulnerável. Na condição de consumidor, perante as empresas, todos são vulneráveis. O que dirá essa parcela de consumidores que está entrando agora. Eles são hiper vulneráveis, principalmente em relação a compras a crédito, que têm taxas de juros exorbitantes. E o Custo Efetivo Total ainda não está sendo implementado; se você for nas lojas que vendem produtos a crédito, financeiras, essa informação ainda não é fornecida de forma adequada. Mas é óbvio que ela vai ajudar. Além disso, é importante que a população se informe melhor, porque uma doença que está crescendo em vários países é o endividamento. Hoje tem países com índices de endividamento preocupantes e alguns têm uma legislação que "trata" das pessoas endividadas, como aqui a legislação cuida das empresas nessa situação. No Brasil não se tem legislação para isso; se a pessoa física vai à falência, ela não tem saída, ela tem um tratamento pior do que a empresa. Há um grupo de juristas preparando uma proposta de legislação para lidar com endividamento. E hoje existe um apelo muito forte para que a população compre a crédito. Se você sai pelo centro da cidade aqui de São Paulo, o que tem de pessoas que ficam fazendo propaganda na rua chamando "Compre aqui", "Crediário fácil", e essa propaganda está também na TV e cartões são enviados pelo correio sem as pessoas pedirem. A informação é fundamental, mas não só informação, a educação.