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ComCiência

versión On-line ISSN 1519-7654

ComCiência  n.98 Campinas  2008

 

ARTIGO

 

Adolescentes e o sistema de justiça juvenil

 

 

Liana de Paula

 

 

Recentemente, alguns crimes violentos cometidos por adolescentes reacenderam a discussão sobre a redução da maioridade penal e colocaram em debate o que a sociedade brasileira pretende ao punir seus adolescentes. Casos como o do assassinato do casal Felipe Caffé e Liana Friedenbach (em 2003) e do menino João Hélio Fernandes Vieites (em 2007), todos consumados com a participação de adolescentes na faixa etária dos 16 anos, comoveram diferentes parcelas da população brasileira pela violência e crueldade impingidas às vítimas, todas também muito jovens, e levaram ao questionamento sobre a eficácia e a efetividade do sistema de justiça juvenil em reprimir e tratar as condutas violentas dos adolescentes. Este artigo propõe traçar algumas linhas de reflexão sobre esse sistema a partir da perspectiva histórica de sua emergência e desenvolvimento, focalizando as concepções de justiça e punição postas em jogo.

No momento de sua emergência, no início do século XX, o sistema de justiça juvenil vinha ao encontro das demandas de ordenamento do espaço urbano e formação do mercado de mão-de-obra assalariada. O público alvo desse sistema eram crianças e adolescentes pobres que, perambulando pelas ruas e transitando entre pequenas atividades lícitas (engraxar sapatos, vender jornais, pedir esmolas, etc.) e ilícitas (furtar carteiras), escapavam da inserção no mundo do trabalho por meio das fábricas, oficinas e da construção civil. Logo sua presença nas ruas da metrópole passou a ser vista como fonte da desordem urbana, levando ao surgimento das primeiras instituições públicas especificamente voltadas para a segregação e o tratamento de crianças e adolescentes infratores ou considerados em situação de abandono1. Em paralelo, organizavam-se os primeiros movimentos de criação de um sistema de justiça específico para crianças e adolescentes pautado em uma concepção de justiça recuperadora, culminando na promulgação do primeiro Código de Menores, em 1927 (Alvarez, 1989).

A concepção de justiça recuperadora, base ideal sobre a qual esse sistema se organizou ao longo do século XX, definiu -se a partir de um esquema interpretativo das condutas criminosas que localizava na infância a origem da delinqüência. Isto é, para que a justiça pudesse ser recuperadora, a conduta delinqüente não poderia ser vista como fruto da má índole ou outra característica inata, mas deveria ser interpretada como resultado de trajetórias individuais cujas características permitissem o estabelecimento de relações de causalidade com a delinqüência. Nessa concepção, a ação punitiva deveria ter como finalidade a correção das causas da delinqüência, priorizando a dimensão pedagógica de tratamento de crianças e adolescentes em tempo de prevenir a formação do criminoso adulto.

No início do século XX, a não inserção no mundo do trabalho (representado pelo trabalho nas fábricas, oficinas e na construção civil) era tida como central na determinação da delinqüência. Sua centralidade pode ser observada tanto nas condutas visadas como passíveis de apreensão pela autoridade policial – isto é, a desordem, a vadiagem e a embriaguez (Fausto, 2001) – quanto nas propostas de pedagogia do trabalho das instituições públicas de recuperação2. Porém, transcorrido o período de formação do mercado de mão-de-obra assalariada, a busca das causas da delinqüência passou cada vez mais a focar o mundo interior dos indivíduos pobres, sua vida familiar e a experiência do abandono.

Na década de 1920, já estavam presentes alguns elementos desse esquema interpretativo da delinqüência juvenil focado no mundo interior dos pobres. Entendendo a conduta delinqüente como resultado do estado de abandono material e da negligência dos pais, o sistema de justiça juvenil atuava de modo a promover sua substituição por cuidados técnico-assistenciais supostamente oferecidos nas instituições de recuperação e tratamento.

Já na segunda metade do século XX, esses elementos passaram a integrar de forma mais intensa a interpretação e o tratamento das condutas delinqüentes por meio da disseminação do conceito de desestruturação familiar. Essa se tornou, então, a causa primeira a partir da qual passaram a ser compreendidos os problemas de delinqüência e de situação de rua de crianças e adolescentes pobres. Enraizava-se, assim, a noção de que a família ilegalmente constituída, desorganizada pela separação ou falecimento de um dos genitores, despreocupava-se com o destino de seus filhos, lançando-os em ambientes de miséria, promiscuidade e delinqüência (Rodrigues, 2001; Passetti, 1999). Novamente, a atuação do sistema de justiça juvenil reafirmava sua concepção recuperadora, transferindo para as instituições de internação a tarefa de "corrigir as causas do desajustamento"3. Nesse esteio, foram criadas a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor, em 1964, e suas correlatas estaduais, e foi promulgado o segundo Código de Menores, em 1979.

No final do século XX, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a concepção de justiça recuperadora é atualizada na figura jurídica das chamadas medidas socioeducativas. Embora tenham caráter compulsório, essas medidas visam enfatizar a dimensão pedagógica da punição de adolescentes por os considerarem pessoas em desenvolvimento. A novidade parece estar localizada no investimento em formas de tratamento que prescindem da internação em instituições de correção. Ou seja, a correção das condutas juvenis desviantes passa a englobar o acompanhamento e tratamento das relações sociais dos adolescentes in loco (Paula, 2006).4

Se, ao longo do século XX, a finalidade da ação punitiva sobre os adolescentes parece ter permanecido essencialmente a mesma, qual seja, a recuperação dos indivíduos e a correção das condutas; as técnicas e os mecanismos para atingir essa finalidade foram sendo alterados conforme o contexto histórico-social e o acúmulo de saberes sobre os adolescentes pobres e suas trajetórias individuais. Desde as questões inicialmente postas da formação do mercado de mão-de-obra assalariada e do ordenamento do espaço da metrópole até a gestão dos problemas urbanos relativos à pobreza, as técnicas punitivas adotadas pelo sistema de justiça juvenil (a pedagogia do trabalho, a substituição dos cuidados familiares, o tratamento das relações sociais) estiveram e ainda estão referenciadas às problematizações sociais do momento e procuravam, e ainda procuram, dar conta de um objeto a conhecer, a delinqüência juvenil.

Objetivamente, ainda não é possível avaliar comparativamente a eficácia das diferentes técnicas punitivas adotadas pelo sistema de justiça juvenil. Como as noções de avaliação e monitoramento, em voga atualmente, são recentes na administração pública brasileira, há pouca possibilidade de se obter séries históricas de dados sobre reincidência e outras variáveis que permitam uma comparação longitudinal. Desse modo, não é possível precisar, em termos quantitativos, o quanto o sistema de justiça juvenil tem conseguido realizar concretamente a concepção de justiça recuperadora.

Subjetivamente, porém, os resultados alcançados até o momento parecem tender mais para a frustração. Expressões usadas pelo senso comum definindo as instituições de internação de adolescentes como "escolas de criminalidade", e a consternação diante da violência dos adolescentes em casos como os citados no início deste artigo, são apenas algumas pistas que apontam para os sentimentos de incerteza e desconfiança em relação à eficácia do sistema de justiça juvenil, isto é, à sua possibilidade real e concreta de recuperar indivíduos.

Os sentimentos de incerteza e desconfiança alimentam, em contrapartida, uma dimensão da punição que o sistema de justiça juvenil e a concepção recuperadora de justiça relegaram para segundo plano, a da expiação da culpa. Nesse sentido, desde o final do século XX, tem ganhado força um movimento de endurecimento penal cuja concepção de justiça aproxima a punição de um ritual sacrificial, que visa reestabelecer a ordem social por meio da repressão exemplar das condutas individuais desviantes. Grosso modo, a proposta é sacrificar simbolicamente alguns indivíduos, segregando-os do convívio social, em nome da manutenção do estado de coisas.

Diante de crimes violentos cometidos por adolescentes, o movimento de endurecimento penal se fortalece, pois aparece como uma solução aos sentimentos coletivos de consternação e revolta causados pela violência e brutalidade. Resultante desse movimento, a redução da maioridade penal de 18 para 16 anos nos casos de tráfico de drogas, tortura, terrorismo e crime hediondo (seqüestro, estupro, atentado violento ao pudor, roubo seguido de morte e homicídio qualificado) foi aprovada, na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, em 2007. Embora essa proposta de redução ainda não esteja em vigor e ainda deva ser submetida a votações no Senado e na Câmara dos Deputados, ela aponta a tendência de se deslocar a tônica da concepção de justiça recuperadora para a sacrificial, lançando alguns adolescentes para o sistema de justiça adulto.

Por meio da perspectiva histórica, o estudo da punição dos adolescentes permite observar que, desde o surgimento do sistema de justiça juvenil, a recuperação dos indivíduos e a correção de condutas mantêm-se como finalidade da ação punitiva. Porém, o crescimento do movimento de endurecimento penal questiona se, e em que medida, a possibilidade de tratamento das condutas violentas é uma promessa não cumprida, reacendendo sentimentos de frustração e decepção que se transfiguram em sentimentos de raiva e ódio5. Nesse esteio, abre-se um flanco para o desenvolvimento da punição sacrificial e seu elemento irracional, o desejo de vingança, de expiação do mal cometido como resposta à violência cometida por adolescentes. Para enfrentar essa dimensão da punição, é preciso re-discutir e re-pensar sua dimensão recuperadora, sob risco de abrirmos uma caixa de Pandora referente às crueldades do punir.

 

Bibliografia

Alvarez, Marcos César (1989). "A emergência do Código de Menores de 1927". Dissertação (Mestrado). São Paulo: Departamento de Sociologia – FFLCH/USP.

Fausto, Boris (2001). Crime e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo. p. 91-100.

Passetti, Edson (1999). "Crianças carentes e políticas públicas". In. Del Priore, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 347-75.

Paula, Liana de (2006). "Encarceramento de adolescentes: o caso Febem". In. Paula, Liana de; Lima, Renato Sérgio de (orgs.). Segurança pública e violência. São Paulo: Contexto. p. 31-40.

Rodrigues, Gutemberg Alexandrino (2001). Os filhos do mundo. São Paulo: IBCCRIM.

Santos, Marco Antonio Cabral dos (1999). "Criança e criminalidade no início do século". In. Del Priore, Mary (org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto. p. 210-30.

Wieviorka, Michel (1997). "O novo paradigma da violência". Tempo social. São Paulo: vol. 9 (1). p. 5-41.

 

 

Liana de Paula é coordenadora adjunta do Núcleo de Pesquisa do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCrim e assistente de direção da Escola para Formação e Capacitação Profissional da Fundação CASA. Atualmente também é doutoranda em sociologia pela Universidade de São Paulo.

1 Na cidade de São Paulo, por exemplo, foi criado o Instituto Disciplinar em 1902.
2 Segundo Marco Antonio C. dos Santos (1999), o Instituto Disciplinar de São Paulo tinha uma proposta corretiva pautada na pedagogia do trabalho, isto é, na noção de que a disciplina esperada e exigida para o exercício das funções produtivas no mundo do trabalho seria suficiente para corrigir eventuais desvios de conduta.
3 Decreto Estadual 8.777, de 13/10/1976, que estabelece o Estatuto da Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo.
4 A liberdade assistida, medida socioeducativa que vem sendo amplamente adotada no estado de São Paulo, envolve a figura do orientador social, que acompanha o desempenho do adolescente na escola, indica e também acompanha seu desenvolvimento em cursos de educação profissional, faz visitas domiciliares e orienta a família diante das dificuldades de sua vida cotidiana.
5 Cf. Wieviorka, 1997.