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ComCiência

On-line version ISSN 1519-7654

ComCiência  no.98 Campinas  2008

 

ARTIGO

 

Os sentidos da punição

 

 

Marcos César Alvarez

 

 

O mundo contemporâneo assiste a dramáticas transformações nos mais diversos âmbitos da vida social. E também as formas de violência e os mecanismos sociais e políticos voltados para seu controle parecem estar em acelerada mutação.

Por um lado, manifestações de violência que caracterizaram grande parte do século XX (cf. Wieviorka, 1997) – como a violência política e o terrorismo de extrema-esquerda, a violência de extrema-direita, voltada para o controle do Estado, e a violência decorrente das lutas de libertação nacional – entraram em refluxo, substituídas, em grande medida, por práticas de violência articuladas a identidades étnicas e religiosas e pelo assim chamado crime organizado, agora de alcance transnacional. Por outro lado, modificou-se igualmente a forma como as instituições de controle social, o sistema de justiça e as instituições e políticas públicas a ele associadas respondem aos desafios – reais ou imaginários – que emergem no horizonte da contemporaneidade.

A discussão do papel da prisão na atualidade exemplifica bem o que está em jogo. Se, até meados dos anos 70 do século XX, as políticas reformadoras no âmbito prisional buscavam seguir a retórica da recuperação dos criminosos, a partir de então pode-se perceber uma significativa inflexão, tanto nas políticas e nas práticas no âmbito prisional quanto no próprio significado mais geral da punição para o conjunto da sociedade. Desde o Iluminismo, a idéia de que a punição deveria ser não um castigo cruel mas um mecanismo de correção e recuperação foi uma diretriz-chave para as reformas das prisões e para a assim chamada humanização das penas na maior parte dos países do mundo. Sem dúvida, autores como Michel Foucault (1977) analisaram muito bem as ambivalências desse processo, que irá se desdobrar posteriormente nas políticas criminais do Estado Social no século XX. O declínio do caráter supliciante das penas não foi uma simples vitória dos valores humanistas mas implicou toda uma reorganização das formas de governo dos indivíduos e das populações no Ocidente, a partir das quais novas formas disciplinares de poder espalharam-se nas mais diversas instituições.

Entretanto, no mundo contemporâneo, mesmo essa retórica recuperadora tem sido abandonada em proveito de uma concepção muito mais conservadora. A prisão voltou a ser defendida apenas como um instrumento de confinamento dos marginalizados da nova ordem social globalizada. Bauman (1999) indica as prisões de segurança máxima – supermax –, onde os presos permanecem 23 horas por dia na cela, sem qualquer tipo de atividade, como o exemplo típico dessa nova estratégia política contemporânea de contenção das massas.

Outras transformações associadas ao endurecimento das instituições penais – como o retorno da defesa da tortura, inclusive pelas democracias liberais a partir dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 – indicam que o processo civilizador da modernidade (cf. Elias, 1990/1993) é um fenômeno muito mais tenso e ambivalente do que poderiam antever as análises habituais nos âmbitos da criminologia e das ciências sociais. Por isso, inúmeros autores contemporâneos têm buscado uma nova compreensão tanto das mutações históricas que levaram à construção do paradigma moderno da punição, quanto das rupturas que parecem apontar para sua crise e ultrapassagem no contexto contemporâneo.

No Brasil, essas questões ganham ainda mais relevância pois o combate à violência permanece como um dos principais desafios à consolidação de uma sociedade efetivamente justa e democrática. Se, no início dos anos 80 do século XX, imaginava-se que a redemocratização do regime político traria imediatamente o cumprimento do estado de direito e a afirmação dos direitos humanos, com as instituições da justiça criminal sendo submetidas a controles mais sistemáticos por parte da sociedade, o que se seguiu foi, de fato, a consolidação de um quadro desalentador: violência disseminada na sociedade, sentimento generalizado de insegurança e impunidade, falta de transparência das instituições públicas, superpopulação nas prisões e as rotineiras rebeliões daí decorrentes, corrupção dos agentes públicos, facções criminosas controlando as prisões e realizando ataques espetaculares contra autoridades etc. O debate público, por sua vez, acerca das alternativas de combate à violência, parece desenrolar-se num limbo de valores e inovações, no qual a ausência de memória histórica caminha pari passu com propostas populistas no campo penal que mimetizam, de forma ainda mais canhestra, o endurecimento penal já descrito em âmbito mundial.

Em oposição a esse quadro desalentador, as pesquisas multidisciplinares nos mais diversos campos das ciências humanas têm buscado uma melhor compreensão do fenômeno da violência no Brasil, bem como das dificuldades das instituições da justiça criminal de se modernizarem e atuarem efetivamente como instrumentos de fortalecimento do estado de direito e da democracia.

O Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV – USP), entre outras pesquisas, tem desenvolvido um projeto no âmbito da sociologia histórica voltado justamente para recuperar o caminho percorrido pelas instituições da justiça criminal e da segurança pública, no estado de São Paulo, no período de 1822 a 2000. O projeto, originalmente intitulado Construção das políticas de segurança e o sentido da punição, São Paulo (1822-2000)1, e que contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), voltou-se para a caracterização das linhas gerais de atuação do governo de São Paulo no âmbito das instituições da justiça criminal e da segurança pública, bem como das práticas dessas mesmas instituições2. Para atingir esse objetivo, o projeto buscou descrever e analisar o papel que as elites políticas e econômicas tiveram na definição de práticas sociais tipificadas como crime ou encaradas como violência e entender como esse papel interferiu na elaboração de leis e de mecanismos de controle social. Parte considerável do trabalho consistiu em identificar e catalogar fontes que permitiriam descrever a implementação das ações na área, ao envolver as dimensões das leis ou regulamentos, da constituição de instituições legais – polícia, prisões, manicômios, instituições para menores – da distribuição orçamentária etc. Foram, desse modo, levantadas e catalogadas fontes documentais tais como: a legislação relativa à área de segurança-justiça, os debates parlamentares, as mensagens do chefe do executivo para as casas legislativas, os relatórios dos secretários de Justiça ou Segurança, bem como os relatórios internos do chefe de polícia, de órgãos policiais especializados, de diretores de presídios e ainda os documentos internos de instituições como livro de controle de movimentação de presos, a correspondência oficial, os prontuários de internos em instituições de controle etc3.

Dada a amplitude do período estudado, envolvendo quase duzentos anos de história, e face à diversidade dos contextos históricos que ele encerra, num segundo momento o projeto concentrou-se sobre três momentos relevantes da história política, econômica e social do país e do estado de São Paulo - de 1880 a 1900, de 1937 a 1950 e de 1960 a 1974.

Tais períodos apresentam, como característica comum, transições políticas complexas, articuladas a densas transformações no plano econômico e social e diversos conflitos ideológicos que proporcionam uma análise sobre as condições de formulação de uma agenda de ações voltadas para a área da justiça e segurança, as formas de sua implementação no estado de São Paulo e alguns dos resultados das ações governamentais nesse setor.

O primeiro período, de 1880 a 1900, abrange, no plano político, a passagem do regime monárquico para o republicano. Ao mesmo tempo, envolve, no terreno econômico e social, a abolição da escravidão e a constituição do mercado de trabalho livre no país. Ocorre, nesse período, um acentuado processo migratório de trabalhadores europeus para o estado de São Paulo, uma intensificação na ocupação espacial agrícola, impulsionada sobretudo pela produção do café, e, ao mesmo tempo, uma acelerada urbanização da capital de São Paulo que passou a concentrar um núcleo de pequenas indústrias. Transformações que alteraram o arcabouço jurídico do país, mudaram a percepção das elites dirigentes quanto à ordem pública, conformaram políticas de segurança que começam a construir uma rede de instituições voltadas para o controle social, bem como a burocratizaram os aparelhos estatais que atuavam nessa área, sobretudo o aparelho policial.

O segundo período, de 1937 a 1950, corresponde à entrada do país no chamado Estado Novo, entre 1937 a 1945, para depois reorganizar-se num quadro de normalidade democrática. Politicamente, de 1937 a 1945, houve uma forte centralização da máquina governamental e foram reprimidos duramente os grupos de oposição na fase autoritária, além de ocorrer o cerceamento à liberdade de organização e expressão. A fase de democratização dá início a um novo período da história política brasileira que coloca em cena novas alianças políticas em torno dos desafios ao desenvolvimento econômico e social, reconhecido como tema de relevância na agenda política nacional. No plano econômico, o país sente as oscilações da economia mundial em torno da conjuntura provocada pela Segunda Guerra Mundial. Internamente, a base industrial se consolida e a classe operária se torna um ator cada vez mais relevante no cenário das políticas de desenvolvimento econômico que iriam ser implementadas. No campo das políticas de segurança, o período permite verificar algumas persistências nas práticas repressivas por parte dos aparelhos policiais, antes e depois do Estado Novo, as relações entre repressão política e repressão ao crime comum e o perfil da atuação do governo autoritário na criação de instituições no âmbito da justiça criminal. Um dos pontos interessantes revelados por esse período é o da persistência das práticas autoritárias e do funcionamento da máquina repressiva instalada e que perdura, mesmo depois do fim do Estado Novo.

No terceiro período, de 1960 a 1974, ocorre o inverso, ou seja, o país vive uma situação de normalidade democrática, entre 1960 e 1964, para posteriormente mergulhar num novo período autoritário, sob a mão de governos militares que impuseram forte repressão aos grupos de oposição e, como no Estado Novo, promoveram a tortura e a execução sumária de integrantes dos grupos considerados subversivos. O período que antecede o golpe de 1964 ainda é marcado por forte mobilização popular em torno de reformas sociais. O golpe instaura uma política econômica francamente favorável ao capital externo e à concentração da renda, promove diversas formas de desmobilização de sindicatos, de organizações populares e estudantis. As resistências políticas ao regime militar provocam a radicalização da ditadura entre 1969 e 1974, período no qual as forças de repressão atuavam sem qualquer controle legal. A transição de um regime democrático e de mobilização popular para um progressivamente autoritário a partir de 64, permite analisar as alterações no plano das concepções de uma agenda de segurança pública bem como os novos arranjos institucionais que permitiram a implementação de ações nessa área. É o período propício para a análise das articulações entre a repressão aos grupos de oposição política e a repressão aos criminosos comuns.

A partir da análise desses períodos, pode-se afirmar que atravessa de modo profundo toda nossa história, desde o final do século XIX até o final do século XX, o desejo das elites de transformar o Brasil num país moderno, entendido como espelho nos trópicos dos avanços materiais e das formas de organização social e política em curso na Europa e nos EUA, e daí a importância de modernizar igualmente as instituições da justiça criminal e da segurança pública, como exemplificado no caso de São Paulo. Entretanto, essas mesmas elites não manifestam idêntico entusiasmo pelas formas de vida democráticas, que marcam igualmente a maior parte daquelas sociedades, nem acreditam que o direito à cidadania plena possa ser exercido, sem maiores problemas, pelo conjunto da população. No que diz respeito à justiça criminal e à segurança pública, há um recorrente esforço de modernização institucional, mas com resultados tímidos no âmbito da consolidação das garantias legais e dos direitos civis, sobretudo para a população mais pobre ao confrontar-se com o universo da lei e do direito.

A área da justiça criminal e da segurança pública é, desse modo, uma das que mais parece se caracterizar por esse processo de "modernização seletiva" (cf. Souza, 2000), no qual o crescimento dos orçamentos, a criação de novas instituições, o aperfeiçoamento técnico da legislação e das práticas de controle social caminham dissociados da efetiva expansão da cidadania para o conjunto da população. Na passagem dos diferentes regimes políticos, uma clara continuidade autoritária se manifesta, pois práticas de violência ilegal, de tortura e outras violações de direitos são repostas mesmo em contextos políticos e sociais em mutação. A contrapartida dessa continuidade autoritária é, justamente, a descontinuidade das práticas democráticas e republicanas pois estas, mesmo quando implementadas, não ganham continuidade e são freqüentemente esquecidas, o que só contribui para o esvaziamento do debate público. Por exemplo, entre os anos de 1946 e 1964, os temas discutidos na área de segurança pública em São Paulo envolviam questões como as rivalidades entre as corporações, as descontinuidades das políticas na área, as denúncias de violência policial, a cultura policial avessa aos projetos de reforma que pudessem prejudicar os interesses corporativos, entre outros (cf.Battibugli, 2006), enfim, debates ainda muito atuais mas que não tiveram continuidade devido à ruptura institucional produzida pelo golpe militar de 1964.

Projetos de cunho sociológico e histórico, tal como o desenvolvido no NEV - USP, associados às muitas pesquisas hoje em curso sobre os temas da violência, da criminalidade e da justiça, ganham especial relevância, ao colocar em perspectiva algumas das principais questões do presente, como as práticas de violência promovidas pelos agentes do Estado, a presença de uma cultura autoritária dispersa na sociedade e a resistência que o poder judiciário e as instituições da segurança pública ainda manifestam ao efetivo avanço dos valores democráticos.

Por sua vez, o discurso conservador que, no debate público atual, elege, entre seus principais inimigos, os direitos fundamentais e sociais afirmados pela Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, os direitos humanos em geral – nomeados como supostos "direitos de bandidos" – e outras reais conquistas obtidas pela democracia no Brasil nas últimas décadas, vale-se com freqüência de argumentos sem perspectiva histórica nem fundamentação sociológica. Por essa via, é toda uma cultura política autoritária que busca se sobrepor ao regime democrático e os temas da punição se prestam bem de alavanca para essa renovada construção simbólica do medo e da insegurança.

Desnudar as raízes históricas dos problemas contemporâneos, em contrapartida, não deixa de ser uma maneira de mostrar que o presente poderia ser de outra forma e que mesmo as instituições e as práticas mais refratárias à mudança podem ser transformadas por meio do pensamento crítico e da ação conseqüente.

 

Referências Bibliográficas

ALVAREZ, Marcos César; SALLA, Fernando; SOUZA, Luís Antonio Francisco de. (2004) "Políticas de Segurança Pública em São Paulo: uma perspectiva histórica". Justiça & História, Porto Alegre, v. 4, n. 8, p. 173-199.

BATTIBUGLI, Thaís. (2006) "Democracia e segurança pública em São Paulo (1946-1964)". Doutorado em Ciência Política, FFLCH-USP.

ELIAS, Norbert. (1990/1993) O processo civilizador. Rio de Janeiro: Zahar. 2.vol.

FOUCAULT, Michel. (1977) Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes.

SOUZA, Jessé de. (2000) A modernização seletiva: uma reinterpretação do dilema brasileiro. Brasília: Universidade de Brasília.

WIEVIORKA, Michel. (1997) O novo paradigma da violência. Tempo Social, São Paulo, vol.9, n.1, p.5-41, maio.

 

 

Marcos César Alvarez é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e pesquisador do Núcleo de Estudos de Violência (NEV – USP)

1 Desde seu início, o projeto foi coordenado pelos pesquisadores Luis Antonio Francisco de Souza, Fernando Salla e Marcos Alvarez.
2 Sobre as principais diretrizes do projeto, agora em fase de finalização, consultar: Alvarez, Salla e Souza (2004).
3 Por exemplo, banco de dados sobre legislação referente à justiça criminal e à segurança pública já está disponível no site do Núcleo de Estudos da Violência: www.nevusp.org